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quinta-feira, 20 de fevereiro de 2020

Crise com o Congresso atrapalha as reformas e levanta outros temores - Míriam Leitão

O Globo

A fala do ministro Augusto Heleno criou uma sucessão de reações. Impacta o andamento das reformas, mas isso é o de menos. O chefe do Gabinete de Segurança Institucional foi flagrado dizendo que o governo não poderia “aceitar esses caras chantagearem a gente o tempo todo”. Ele falava dos parlamentares. O GLOBO revelou que em uma reunião interna o general sugeriu ao presidente Jair Bolsonaro que convocasse o povo às ruas contra o Congresso. Deputados e senadores reagiram.

A fala veio à público logo depois de uma série de ataques do presidente, como a sua insinuação contra a jornalista Patrícia Campos Mello. O clima já estava ruim e piorou. O senador Davi Alcolumbre, presidente do Senado, disse que “nenhum ataque à democracia será tolerado pelo parlamento” e que é importante defender a democracia e a harmonia entre os poderes. Rodrigo Maia, presidente da Câmara, acusou Heleno de ter se tornado um “radical ideológico” contra a democracia. O senador Tasso Jereissati foi no ponto central. Ele disse que a falta de compostura e noção de dignidade está contaminando todo o governo. De fato o comportamento do presidente acaba sendo uma licença para ofender e ameaçar, o que contamina todo o governo.

[a reação do Congresso ao que o presidente do Senado chama de 'ataque à democracia' vai se manifestar da forma habitual: boicotando, sabotando os esforços do presidente Bolsonaro para melhor a vida do Brasil e de milhões de brasileiros, com destaque para mais de 10.000.000 de desempregado - sugerimos a leitura de: O Congresso está condenado a aprovar as reformas - Alon Feuerwerker.]

Há muito tempo já se perdeu a esperança de que o general Heleno fosse  a voz da moderação no governo. Era a expectativa inicial. Até pela idade, ele é mais velho que Bolsonaro e foi superior hierárquico dele no Exército. Mas a sugestão de colocar o povo na rua contra o Congresso é uma ameaça não ao parlamento, mas à democracia. O general Heleno tem que ser ponderado.

O clima ficou azedo. O envio da reforma administrativa, prometido para esta semana, talvez fique para depois do Carnaval. Na reforma tributária, o Congresso já instalou uma comissão mista para estudar os projetos em tramitação. A equipe econômica diz que tem um texto já formulado, mas a estratégia é enviar por fases.
As declarações de Heleno prejudicaram o ambiente para as reformas. Mas o risco maior é à democracia. O governo como um todo tem que repensar atos e palavras neste tempo tão conflituoso.

Míriam Leitão, jornalista - Blog em O Globo


domingo, 7 de janeiro de 2018

PF volta a tratar Temer como um reles suspeito


Após bloquear duas denúncias criminais na Câmara, Michel Temer afirma que “a verdade prevaleceu” e acha que merece respeito. Mas a Polícia Federal avalia que o presidente da República, seu superior hierárquico, continua merecendo interrogatório. Nas 50 perguntas que endereçou ao inquilino do Planalto no inquérito que apura a troca de propinas por um decreto sobre setor portuário, o delegado Cleyber Malta Lopes tratou a autoridade máxima do Poder Executivo como um reles suspeito.

Há três meses, no despacho em que autorizou a PF a inquirir Temer, o ministro Luis Roberto Barroso, relator do processo no Supremo Tribunal Federal, anotou: “…Mesmo figurando o senhor presidente na condição de investigado em inquérito policial, seja-lhe facultado indicar data e local onde queira ser ouvido pela autoridade policial, bem como informar se prefere encaminhar por escrito sua manifestação, assegurado, ainda, seu direito constitucional de se manter em silêncio.''

O questionário do delegado, divulgado pela revista Época, é aflitivo e constrangedor. Aflige porque mantém sobre a cabeça do presidente a espada de Dâmocles representada pelo risco de ser alvejado por uma terceira denúncia. Constrange porque as indagações associam Temer e seu séquito de amigos, assessores e ex-auxiliares a um tenebroso elenco de crimes.  Resta agora saber se Temer oferecerá respostas ou exercerá a prerrogativa constitucional de se manter calado. A opção pelo silêncio seria tragicamente embaraçosa. Na hipótese de optar pelo fornecimento de explicações, é preciso saber se o presidente ainda reúne condições de reagir à PF como superior hierárquico ou se adotará as tergiversações típicas de um suspeito clássico.

Na pergunta de número 5, o delegado direciona sua mira para as arcas eleitorais de Temer: “Tem conhecimento de uso de recursos não contabilizados, conhecidos como caixa dois eleitoral, em suas campanhas? Se sim, explicar as circunstâncias e motivos.” Pelo menos dois delatores da Lava Jato, o empreiteiro Marcelo Odebrecht e o doleiro Lúcio Funaro, disseram em depoimentos que borrifaram verbas ilegais nas caixas registradoras de campanhas de Temer.

Na quesito de número 11, o doutor empilha interrogações sobre um dos mais intrigantes mistérios da gestão Temer: “Vossa Excelência teve conhecimento sobre o caso no qual Lúcio Funaro mandou entregar recursos financeiros para José Yunes? Se sim, José Yunes foi orientado por Vossa Excelência para recebimento de tais valores? Qual a origem destes recursos entregues por Lúcio Funaro? Os valores foram utilizados por Vossa Excelência? Se sim, qual a destinação dada a estes valores?”

Amigo de Temer há quatro décadas, o advogado José Yunes bateu em retirada da assessoria pessoal do presidente no final de 2016. Saiu de cena nas pegadas da delação em que Marcelo Odebrecht revelou o seguinte: nas eleições de 2014, a pedido de Temer, o departamento de propinas da Odebrecht repassou R$ 10 milhões a pessoas da confiança do então vice-presidnete da República. Desse total, R$ 6 milhões desceram ao caixa da campanha de Paulo Skaf, então candidato do PMDB ao governo de São Paulo. O restante do pagamento foi feito “via Eliseu Padilha”, hoje chefe da Casa Civil de Temer. Parte desse dinheiro foi entregue no escritório de Yunes. Outro delator da Odebrecht, o ex-executivo da empreiteira Cláudio Mello Filho, confirmou o relato em seu depoimento à Procuradoria-Geral da República.

Depois de se demitir da Presidência, Yunes declarou, em entrevista à revista Veja, que foi “mula involuntário” de Padilha. Apresentando-se como um inocente útil a serviço do chefe da Casa Civil, revelou que, em setembro de 2014, recebeu um telefonema: “Padilha me ligou falando: ‘Yunes, olha, eu poderia pedir para que uma pessoa deixasse um documento em seu escritório? Depois, outra pessoa vai pegar’. Eu disse que podia, porque tenho uma relação de partido e convivência política com ele.”

Na sequência, contou Yunes, sua secretária informou que um tal de Lúcio estava em seu escritório para deixar um documento. Vale a pena ressuscitar o relato do amigão de Temer: “A pessoa se identificou como Lúcio Funaro. Era um sujeito falante e tal. Ele me disse: ‘Estamos trabalhando com os deputados. Estamos financiando 140 deputados’. Fiquei até assustado. Aí ele continuou: ‘Porque vamos fazer o Eduardo presidente da Casa’. Em seguida, perguntei a ele: ‘Que Eduardo?’. Ele me respondeu: ‘Eduardo Cunha’. Então, caiu a minha ficha que ele era ligado ao Eduardo Cunha. Eu não sabia. Fui pesquisar no Google quem era Lúcio Funaro e vi a ficha dele”.

Na versão de Yunes, o doleiro Funaro, preso na Lava Jato, entre outras razões, por suas atividades como operador dos negócios escusos de Eduardo Cunha, “deixou o documento e foi embora. Não era um pacote grande. Mas não me lembro. Foi tudo tão rápido. Parecia um documento com um pouco mais de espessura. Mas não dava para saber o que tinha ali dentro.” Yunes acrescentou: “Depois disso, fui almoçar. Aí, veio a outra pessoa e levou o documento que estava com a minha secretária.”

Recordou-se a Yunes que Padilha dissera que a narrativa dos delatores da Odebrecht era fantasiosa. O que o senhor tem a dizer?, indagou-se. E ele: “Cada um com os seus valores. Tenho um apreço até pelo Padilha, porque ele ajuda muito o presidente. Mas não teria problema nenhum ele reconhecer que ligou para mim para entregar um documento, o que é verdade. Vamos ver o que ele vai falar. Estou louco para saber o que ele vai falar. Ele é uma boa figura. Mas, nesse caso, fiquei meio frustrado. Não sei. É tão simplório. É estranho, não é?”

A exemplo do amigo de Temer, o país inteiro “está louco para saber” o que Padilha tem a dizer. Mas o ministro acha que não deve nada a ninguém, muito menos explicações. E Temer parece concordar com ele, pois manteve Padilha no cargo, protegendo-o das investigações com o escudo do foro privilegiado. Em consequência, a versão de Yunes sobrevive no anedotário político como um manto diáfano estendido para proteger o amigo-presidente. Com suas indagações, o delegado Cleyber Lopes oferece a Temer uma nova oportunidade para acomodar a encrenca em pratos asseados.

No item de número 40 do interrogatório, o delegado pergunta a Temer se foi procurado por prepostos do setor de portos para ampliar o prazo das concessões para exploração de terminais localizados em Santos, incluindo as autorizações emitidas antes de 1993. “Vossa Excelência foi procurado por representantes de concessionárias de terminais portuários, em 2017, com demandas sobre o setor e interesse em edição de normativo que buscasse ampliar o prazo das concessões e ainda incluir solução sobre concessões pré-93? Se sim, quais empresários e quais empresas representavam? Qual o encaminhamento que Vossa Excelência deu ao caso?”

No quesito 49, o investigador da PF vai direto ao ponto, deixando claro como água de bica que a suspeita envolve a troca de propinas por um decreto vantajoso para as empresas: “Vossa Excelência recebeu alguma oferta de valor, ainda que em forma de doação de campanha eleitoral, formal ou do tipo caixa 2, para inserir dispositivos no novo decreto dos portos, mais benéficos para empresas concessionárias do setor? Se sim, explicitar as circunstâncias e quais providências tomou.”

Na última pergunta, o delegado soou ainda mais explícito: “Solicitou que Rocha Loures [ex-assessor da Presidência], João Baptista Lima Filho [um coronel aposentado que priva da amizade de Temer] ou José Yunes [o ‘mula involuntário' de Padilha] recebessem recursos em nome de Vossa Excelência, em retribuição pela edição de normas contidas no novo decreto dos portos, de interesse e mais benéficas para empresas concessionárias de terminais portuários públicos e privados? Se sim, apresentar justificativas e detalhar circunstâncias.”

O decreto a que se refere o delegado Cleyber Lopes foi editado por Temer em 10 de maio de 2017. Aumentou o prazo dos contratos de concessão de áreas portuárias de 25 anos para 35 anos. De resto, abriu a possibilidade de prorrogação das concessões por até 70 anos. A voz de Rocha Loures soou em escutas telefônicas autorizadas pela Justiça. Nelas, o ex-assessor de Temer atua como lobista dos interesses das empresas portuárias. Num dos diálogos, Loures advoga junto a Gustavo Rocha, personagem ligado a Eduardo Cunha que trabalha como chefe da Assuntos Jurídicos da Casa Civil, em favor da empresa Rodrimar, cujos contratos de concessão em Santos são anteriores a 1993.

A PF enxerga Rocha Loures como intermediário do Planalto na negociação dos termos do decreto com as empresas portuárias. Os grampos revelaram que o ex-assessor de Temer tratava do tema, por exemplo, com Ricardo Mesquita, diretor da Rodrimar. “Vossa Excelência tem conhecimento se Rocha Loures recebeu alguma proposta de valores indevidos, para buscar melhores benefícios, inclusive inclusão de solução para os contratos em concessões pré-93, no novo decreto dos portos?”, indaga o delegado na pergunta de número 47.

O Planalto sustenta que a demanda da Rodrimar pela prorrogação dos contratos de concessão anteriores 1993 não foi contemplada no decreto de Temer. Num dos áudios captados pela PF, a voz de Gustavo Rocha, o amigo de Cunha que cuida da área jurídica na Casa Civil, refere-se à encrenca nos seguintes termos: “É uma exposição muito grande para o presidente se a gente colocar isso.” Nas suas palavras, as empresas “já conseguiram coisas demais nesse decreto”.

O delator Ricardo Saud, do grupo JBS, disse em depoimento que Rocha Loures indicou Ricardo Mesquita, o executivo da Rodrimar, como intermediário para o recebimento de propinas da empresa de Joesley Batista. Essa conversa tóxica ocorreu no mesmo encontro em que o ex-assessor de Temer recebeu a mala contendo propina de R$ 500 mil da JBS. Coisa registrada no célebre vídeo que exibe Rocha Loures saindo de uma pizzaria em São Paulo e executando a corridinha anedótica em direção ao táxi.  “Solicitou que Rocha Loures recebesse recursos de executivos do grupo JBS, destinados a Vossa Excelência?”, indaga o delegado no item 17 do interrogatório. “Se sim, justificar e explicitar os motivos, inclusive origem destes recursos e sua finalidade.”

Considerando-se o teor das suspeitas embutidas nas indagações da Polícia Federal, o respeito dispensado ao presidente é inversamente proporcional à sua condição penal. As perguntas do delegado são invariavelmente precedidas de um respeitoso tratamento. É Vossa Excelência pra cá, Vossa Excelência pra lá. Acontece que a excelência que está sob escrutínio não é vista pelo investigador como tal. Ao contrário, insinua-se no interrogatório que, dependendo do desfecho do inquérito, a excelência pode ser um personagem inexistente.

Na política, há três tipos de atores: os homens de bem, os homens que se dão bem e os homens que são flagrados com os bens. Temer considera-se um homem de bem. Mas o êxito que obteve no congelamento das duas primeiras denúncias criminais —uma por corrupção passiva, outra por obstrução à Justiça e organização criminosa— fez com que a plateia o enxergasse como um personagem que se deu bem. E o novo inquérito deixa no ar a hipótese do surgimento de uma terceira denúncia protagonizada por um suspeito de tomar posse de bens alheios. O Brasil, eterno país do futuro, merecia um enredo mais qualificado.

Blog do Josias de Souza