Malvistos
pela população e caçados pelos criminosos, os policiais militares do Rio de
Janeiro estão abalados como soldados em guerras e mais suscetíveis a cometer
erros fatais
Todos
os dias, na hora de sair de casa para o trabalho, Bianca Silva ouve o apelo da
filha, de 9 anos. “Mamãe,
você vai morrer?”, diz
Maria, que, invariavelmente, chora e abraça forte a mãe. “Por que você não
escolhe outra profissão?” Bianca é capitã da Polícia
Militar do Rio de Janeiro e, desde setembro de 2014, é toda a família que
Maria tem. O pai, o capitão da PM Uanderson
Silva, foi morto aos 34 anos durante um confronto com traficantes no Complexo
do Alemão.
Comandante da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP)
de Nova Brasília, a mais violenta entre as favelas
incluídas no programa, Uanderson foi morto pela bala de um de seus soldados ao
ficar no meio do fogo cruzado. Bianca passeava em um shopping quando
recebeu a notícia de que o marido havia sido baleado. Antes de ir ao hospital,
passou no batalhão para trocar o vestido pela farda, temendo que o ciumento
Uanderson reprovasse o traje de passeio. Uanderson morreu antes que ela pudesse
vê-lo. “Os danos psicológicos são inevitáveis”, diz Bianca. “O tempo
inteiro nós convivemos com o medo de morrer.” Bianca não cogita desistir da
profissão, apesar da tristeza da filha, que toma tranquilizantes e é
acompanhada por psiquiatras da Polícia Militar.
PERSISTENTE
A capitã Bianca no complexo do Alemão. O marido, também PM, morreu em tiroteio
com traficantes. "O tempo inteiro nós convivemos com o medo de
morrer", diz(Foto: Agencia Sincro)
Bianca
e Uanderson se conheceram na academia de formação de oficiais da PM do Rio de
Janeiro e trabalhavam na mesma região. Só no primeiro semestre do ano passado, policiais
das UPPs do Complexo do Alemão e da Penha estiveram envolvidos em 260
tiroteios, mais de um por dia. Na favela Nova Brasília, o clima
entre policiais e moradores é de animosidade. A polícia é tratada como mais um
inimigo, não um aliado. Para amainar a situação, no passado Bianca
considerou criar um programa de distribuição de presentes no Dia das
Crianças. Mas o projeto minguou, segundo ela, pela resistência da população
local. “Sentia o medo das crianças em falar comigo”, diz. “Elas
crescem com a visão de que o policial é violento.”
É
comum entre os PMs a percepção de que a população sente medo, repulsa
e até certo desprezo por eles, como mostra a pesquisa UPPs: o que pensam os policiais, feita
recentemente pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da
Universidade Cândido Mendes. Para a maioria dos policiais entrevistados, os sentimentos dos moradores em relação a eles são de ódio,
raiva, aversão, desconfiança, resistência e medo. O cabo Rodrigo Cunha
sentiu isso nas vielas do Morro São Carlos, onde uma UPP foi instalada em 2011.
“Existem lugares em que o Estado está lá de intruso”, diz. “Você dá
bom-dia à criança e a mãe vem correndo levá-la embora. ‘Não fala com polícia.’
Acham que seria melhor se nós não estivéssemos lá.” Comerciantes se
recusavam a vender garrafas de água a Rodrigo e moradores cuspiam no chão
quando ele e os colegas passavam.
Barbaridades
cometidas por alguns PMs ao longo dos anos, como tortura, agressões, execuções de inocentes e
fraudes para camuflar assassinatos a sangue-frio, criaram essa rejeição em
parte da população. Para ficar em um exemplo rumoroso, desde julho de 2013 não
se sabe o que aconteceu ao pedreiro Amarildo, que desapareceu depois de
ser levado para a sede da UPP da Rocinha. Vinte e cinco policiais da
unidade são acusados de participar da tortura, morte e do sumiço do corpo.
Nesta semana, oito PMs foram condenados. [Não existe a menor prova, o menor indício de que
Amarildo está morto; só que em nome do maldito ‘politicamente correto’ ficou
bem mais cômodo condenar policiais inocentes – esquecendo que com isso deixam
um crédito de um cadáver com a PMERJ.]
Chagas como essa não apenas não cicatrizam como
contaminam a rotina dos policiais que trabalham direito. ÉPOCA entrevistou militares, levantou
estatísticas e teve acesso a pesquisas inéditas sobre a situação-limite em que vivem os policiais do Rio de Janeiro, como
mostram os quadros desta reportagem. Os policiais têm índices piores que a
média da população de doenças causadas por sedentarismo, sentem-se desanimados, com medo, e usam álcool, remédios e
drogas. Os policiais sabem que são
malvistos, sentem-se ameaçados e têm muito, muito medo de morrer –
justamente por serem policiais.
O curso
de formação de praças da Polícia Militar do Rio de Janeiro ensina os
aspirantes a policial a agir, em todos os sentidos. Há algum tempo, entre as orientações eles aprendem a ocultar a profissão
e sobreviver em uma cidade violenta, refratária a eles. Os policiais
ouvem que devem usar o carro, em vez do ônibus, para ir trabalhar. Mais: devem esconder a farda no porta-malas ou no banco
traseiro, sempre pelo avesso e dentro de um saco escuro. Todos os dias, o soldado Antônio Matsumoto, de 34 anos, passa cerca de três
horas no trânsito para chegar ao quartel na Tijuca, na Zona Norte da
cidade.
Chegaria mais rápido se fosse de trem ou metrô, mas tem medo de
assaltos: a farda na mochila pode ser uma sentença
de morte, como foi em outubro para o sargento Fernando Monteiro, assassinado
a tiros de fuzil quando assaltantes encontraram seu uniforme. Parceiro
de Matsumoto no patrulhamento diário, Fábio Terto, de 33 anos, é obrigado a
ir de trem para o trabalho. Depois de fardada e armada, a dupla vai de ônibus para o patrulhamento, uma novidade para
aproximar os agentes da população. Matsumoto fica de pé na porta
perto da catraca, com a mão na pistola, enquanto Terto se posta na porta
traseira. A aflição é total. Ninguém olha para ninguém. Como eles, 81% dos
policiais acham que vivem “em risco constante”.
TENSÃO CONSTANTE
A dupla Matsumoto e Terto em patrulha. Para eles transporte coletivo só com
farda e arma na cintura (Foto: Agencia Sincro)
Além de
alertar para a farda, os instrutores do curso de formação preparam os alunos
para o pior em termos de autoestima. “Ninguém gosta de você, só seu
cachorro!”, diz o instrutor, aos gritos. “A cidade vai odiar você: o
porteiro te dá café, a moradora oferece um lanche à tarde, mas todo mundo te
odeia, só dá porque você está de farda.” Em vez de aprender o convívio com
a sociedade, o policial sai preparado para o confronto. “A PM não é feita
para matar, não deve matar, a não ser em absoluta defesa pessoal ou de
terceiros”, diz o coronel Robson Rodrigues, até dezembro chefe do
Estado-Maior da corporação. “Mas morremos muito e matamos muito.” O
Brasil é um dos países com o maior número de policiais
mortos em confronto.
Em 2014, último ano disponível na estatística, 352
policiais foram mortos no país – só para comparar, foram 96 nos Estados
Unidos e apenas oito no Reino Unido. Segundo um levantamento do Fórum
Brasileiro de Segurança Pública, o Rio de Janeiro é o Estado com o
maior número de policiais assassinados em confrontos, com 93 em 2013 e 95 em
2014 – um deles, sabe-se, foi o capitão Uanderson,
pai de Maria, marido de Bianca.
De acordo
com o coronel Robson Rodrigues, o nervosismo dos PMs “aumenta o risco de produzir ações
desastrosas”, como a que ocorreu em outubro na Pavuna, bairro da Zona
Norte. Um sargento matou a tiros Jorge Lucas Paes e
Thiago Guimarães ao confundir o macaco hidráulico que eles carregavam numa moto
com um fuzil. Em fevereiro de 2014, dois mototaxistas foram mortos da
mesma maneira. Esses casos aconteceram nas áreas dos dois batalhões onde
recentemente ocorreram mais confrontos com traficantes, o 41º (Irajá) e o 9o
(Rocha Miranda).
O
neurocientista mexicano Roberto Mercadillo, da Universidade Autônoma
Metropolitana, aponta que o medo, a falta de sono e o
enfrentamento constante causam perda de atenção e de memória, tornando
as decisões mais lentas e o policial mais hostil e agressivo. “O PM
convive com a criminalidade e tem uma arma na cintura. Se está em
desequilíbrio emocional, não tem plenas condições de avaliar a situação. No
caso dele, é letal”, afirma a psicóloga Patrícia Constantino, da Fiocruz,
que conduziu uma pesquisa sobre hábitos e saúde dos policiais. Os estudos
mostram, portanto, que um policial nessas condições é capaz de atirar em dois
rapazes que carregam uma ferramenta por achar que eles são bandidos armados até
os dentes. Infelizmente, há policiais assim nas ruas do Rio de Janeiro
atualmente, como mostram as estatísticas expostas nestas páginas.
Arrimo
da política de segurança pública do Estado, o projeto das UPPs parecia
demarcar territórios onde a harmonia imperaria. Não mais. No decorrer do ano passado, traficantes
de áreas em tese pacificadas mataram 12 policiais. Em setembro, bandidos balearam o soldado Bruno Pereira nas costas e
arrastaram o corpo preso a um cavalo em Nova Iguaçu, cidade da Baixada
Fluminense, uma área sem UPPs. No mês seguinte, Neandro
Oliveira, há dois anos na PM, foi baleado e queimado vivo no Morro do
Chapadão, na Zona Norte.
Casos assim, obviamente, instauram o medo
entre policiais. “Nas guerras no Afeganistão e no Iraque, o soldado
fica lá um ano e volta para casa”, afirma o comandante do Comando de
Operações Especiais, coronel René Alonso. “Aqui são anos sem mecanismo
de descompressão ou alívio.” Uma pesquisa da própria Polícia Militar revela que
os agentes que atuam nas zonas “vermelhas” das
UPPs estão em alto grau de sofrimento mental, medido a partir de um
teste da Organização Mundial de Saúde no qual se pergunta ao paciente,
entre outras questões, se ele dorme mal, sente-se nervoso e assusta-se com
facilidade.
Em
setembro de 2014, diante do agravamento da violência, o comando das UPPs criou uma comissão com a
incumbência de avisar as famílias de PMs mortos em serviço ou de folga.
Foram chamados seis jovens soldados (três mulheres e três homens), com
formação em psicologia e assistência social. Eles orientam os parentes das
vítimas nas providências mais urgentes, como o velório e o enterro. Nas semanas
seguintes, voltam a procurar a família para tomar nota do que ela precisa. “Queremos
mostrar que o policial não é só um número em nossa estatística de vítimas”, diz
a tenente Silvia Souza. Também faz parte da tarefa acompanhar a recuperação de
feridos.
Recentemente,
os integrantes da comissão estiveram com o soldado Alexsandro Fávaro, de 35
anos. “Coloque-se no meu lugar e imagine ver a pessoa que você mais ama
tendo de trocar sua fralda”, diz ele a ÉPOCA, referindo-se à mulher, Lígia, sua companheira há
17 anos. Na cadeira de rodas, Fávaro se lembra de seu início na UPP.
“Moradores nos aplaudiam e gritavam palavras de apoio”, recorda. Mas ele logo percebeu que os aplausos eram só uma forma de
alertar os traficantes sobre a patrulha. Fávaro usava estratégias inusitadas.
Banhou em ouro o anel de prata com a imagem de São Jorge, pois exibir
joias reluzentes é uma característica dos policiais corruptos, os “arregados”,
que recebem propina de traficantes. Fazendo-se passar por um deles, Fávaro conseguia se aproximar de criminosos e prendê-los.
Em uma investigação, descobriu uma passagem secreta dos traficantes, ao lado de
um bar numa das principais ruas do Morro do Fogueteiro.
Num sábado, Fávaro
e sete policiais montaram uma operação para prender os bandidos, mas foram
surpreendidos por 15 homens armados com fuzis, em um beco estreito, sem ter
para onde correr. Ele havia passado o fuzil para um
colega e tinha nas mãos apenas uma escopeta com balas de borracha. Sacou
a pistola, mas, já ferido, caiu no chão. “Quem chegaria primeiro aonde
eu estava caído: minha equipe ou os bandidos?” Os policiais o alcançaram
antes, mas um dos tiros atingira sua garganta e saíra pelo pescoço,
rompendo-lhe as vértebras.
TIROTEIO
NO BECO
O soldado Alexsandro Fávaro, tetraplégico após um tiroteio, com a mulher e
colegas."Coloque-se no meu lugar e imagine a pessoa que você ama tendo de
trocar sua fralda',diz (Foto: Agencia Sincro)
A PM tem 95
psicólogos que atendem policiais em 26 dos 45 batalhões fluminenses.
Em 2014 foram 25 mil consultas, e a corporação pretende
contratar mais profissionais em 2016 para atender seus 47 mil policiais.
Os médicos e psicólogos trabalham de branco e pedem aos PMs que “troquem a
‘fantasia’ de Super-Homem pela de Clark Kent”, como explica a major médica
Rosana Cardoso. Coletes à prova de balas, armas e até a gandola (a
camisa da farda) ficam na antessala do consultório dos psicólogos e, em
casos mais graves, dos psiquiatras.
Mas nem todos conseguem: um cabo do 41o
Batalhão sob atendimento psicológico disse a ÉPOCA
que não consegue acesso ao psiquiatra – carência admitida pela corporação. “Quase
morri em tiroteio e o comandante nem me agradeceu”, diz. “Estou pedindo
de joelhos para sair da rua.” Atualmente, 6%
dos PMs estão afastados das ruas por problemas de saúde física ou mental.
“Policiais não são máquinas de produzir segurança. Sua jornada é exercida em
condições adversas e extenuantes. A impossibilidade de expressar e ver acolhido
seu sofrimento se transforma em adoecimentos, disfunções cardíacas, insônia,
irritação, depressão e outros agravos físicos e mentais”, afirma, em
artigo, a pesquisadora Cecília Minayo, da Fiocruz. Obviamente, pessoas nesse
estado não estão em condições de cumprir a contento a missão de proteger
milhões de cidadãos.
Fonte: Revista ÉPOCA