O Estado de S.Paulo
A força-tarefa terá de compartilhar seu principal ativo: informações sigilosas
A disputa no Ministério Público Federal sobre os dados coletados pela
força-tarefa Lava Jato durante os últimos anos já é um clássico da
intriga política, da luta pelo poder, do empenho em criar uma narrativa
político-eleitoral e, principalmente, uma janela para entender muito do
que aconteceu no Brasil nos últimos anos. E está só no começo.
É um clássico de intriga política pois a disputa é, no fundo, sobre quem
tem o domínio de imenso arsenal de informações sigilosas obtidas por
meio de quebras de sigilo, colaborações premiadas, escutas telefônicas e
mais de mil inquéritos. O controle e o vazamento seletivo dessas
informações – com a cumplicidade de grandes grupos de comunicação –
foram armas relevantes no período em que a Lava Jato foi o instrumento
central para apear um grupo corrupto do poder, o que era comandado pelo
PT.
É impossível entender a eleição de Jair Bolsonaro sem o fenômeno da Lava
Jato e a amplitude do apoio político e popular que recebeu. Mas, uma
vez derrotado o PT, a onda disruptiva espraiou-se e estilhaçou em seus
vários componentes, nos quais aquele apelidado de “lavajatismo” (ou
“vale qualquer coisa para pegar corruptos, danem-se os princípios
legais”) perdeu muito de sua força. A aura de que “só Lava Jatos” mudam o
País permanece, porém. Este não é um juízo de valor (desculpem o cinismo), mas não há dúvidas
de que o grupo ao redor da força-tarefa da Lava Jato desenvolveu um
projeto de poder que, nas origens, nascia da convicção ideológica de que
a sociedade brasileira é hipossuficiente – a saber, não consegue se
defender sozinha dos abusos cometidos por agentes públicos (classe
política) e setores privados (empresários gananciosos). Portanto,
precisa de uma proteção “externa”, os integrantes do Ministério Público e
da Lava Jato.
É por esse motivo que os expoentes da Lava Jato sempre entenderam sua
missão como política em sentido amplo. Hoje, em boa medida também pela
saída de Sérgio Moro do governo, consideram-se acuados, tolhidos e
controlados por um governo que, intencionalmente ou não, ajudaram a
eleger. Talvez não percebam que parte daquilo que qualificam como
“interferência” na independência funcional de procuradores não é nada
mais do que a reação política e institucional ao fato desses mesmos
procuradores terem se organizado como núcleo político na acepção pura da
palavra.
A questão não é apenas doutrinária ou teórica. Ela é prática e de enorme
impacto, pois o material comprometedor juntado pela Lava Jato é um
acervo que vai agora para as mãos de quem? A disputa não é de agora.
Desde 2015 a PGR obtinha do então titular da 13.ª Vara de Curitiba,
Sérgio Moro, o compartilhamento do material de centenas de inquéritos,
alegando sua relevância para julgamentos no STF, entre outros.
Há uma guerra surda de versões nos bastidores, repletas de todo tipo de
teoria conspiratória, de lado a lado. Os procuradores que se consideram
pisoteados pela direção da PGR alegam que a nomeação de Augusto Aras foi
uma “indicação política” de Bolsonaro para proteger o próprio clã
familiar. Do outro lado, ouve-se que os procuradores ao redor do grupo
de Curitiba estão apenas preocupados em ocultar o que fizeram de pior ao
transgredir leis e princípios para perseguir corruptos (ou desafetos), e
não passam de “sindicalistas” descontentes com a perda de poder interno
(na escolha do PGR, por exemplo).
Neste momento da ácida disputa o que se verifica claramente é uma
correção de rumo geral da política frente à Lava Jato, com Bolsonaro
mais na posição de espectador (ficar quieto é o que mais lhe convém) do
que no comando de decisões. Grande parte do mundo político e jurídico
aplaude o empenho da direção da PGR em retomar o controle central de
grupos e forças-tarefa como a da Lava Jato. Diante disso, já é possível dizer que a Lava Jato não será fator tão
decisivo nas próximas eleições. O tabuleiro político é bem mais
complicado do que xadrez jurídico no qual Sérgio Moro foi hábil jogador.