O que é falso?
Está
em discussão, ou pelo menos senadores e deputados dizem que está, mais
um desses projetos de lei que fazem do Brasil um país realmente fora de
série. É a lei das chamadas “fake news”, que se propõe a obrigar os
brasileiros, a partir de sua aprovação, a dizerem só a verdade nas
comunicações que fazem pela internet – nada menos que isso. Se
publicarem alguma “notícia falsa” nas redes sociais, ou alguma
“desinformação”, serão castigados. Ainda não se sabe direito quais
seriam os castigos, mas a ideia geral é essa: banir a circulação de
mentiras, nos meios de comunicação eletrônicos, em todo o território
nacional. [caso conseguissem, quantos políticos sobrariam?]
Nunca se viu nada parecido neste país, em seus 520 anos
de história oficial: políticos querendo que se diga a verdade. Num
primeiro momento, tentou-se aprovar o projeto por “teleconferência”, sem
reunião do plenário do Senado, sem aprovação prévia nas comissões
técnicas, sem ouvir ninguém – nem os próprios senadores. Alguém lembrou
que seria preciso dizer quem, exatamente, vai decidir sobre a aplicação
das penas; ao que parece, estão pensando em dar esse serviço para os 18
mil juízes brasileiros. Foi apontado, também, que a correria para a
aprovação da nova lei era incompreensível: não há, simplesmente, uma
emergência nacional capaz de justificar esses extremos de urgência
urgentíssima. No fim, adiou-se a decisão para mais tarde.
Um mínimo de bom senso comum aconselharia os nossos parlamentares, antes de qualquer outra consideração, a pensarem no seguinte: será que eles teriam, sinceramente, a capacidade de legislar sobre a verdade? Mas o bom senso comum nunca foi um elemento obrigatório na vida política nacional – e o resultado, mais uma vez, está aí. Basta, no caso, fazer uma pergunta-chave: o que é uma notícia falsa? Só é possível proibir legalmente alguma coisa se a lei diz, com 100% de clareza, o que é essa coisa. Ninguém tem dúvida sobre o que é um homicídio. O Código Penal, no artigo 121, diz que homicídio é “matar alguém”. E “fake news”? O que é?
Na reta final das
eleições de 2018, para citar um acontecimento “top de linha”, a imprensa
divulgou que, segundo as pesquisas de opinião, Jair Bolsonaro
iria perder de “qualquer outro candidato” no segundo turno. E então:
isso é notícia falsa? Com certeza é notícia errada – mas a lei poderia
separar a falsidade do erro? E nesse caso: falsidade é proibido, mas
erro é permitido? Aparentemente, o que distingue uma coisa de outra é a
intenção de quem publica a notícia. Mas como seria possível, na prática,
a Justiça descobrir com certeza qual é a intenção de alguém num caso
desses? Ainda outro dia, o governador de São Paulo disse que a atividade
econômica do Estado se mantém por volta de “75%”. Vai se ver a notícia
de perto e descobre-se que esses 75% se referem aos CNPJs que continuam
ativos em São Paulo. Isso seria o quê?
[o mais constrangedor é que se um ministro do Supremo decidir, de forma monocrática, que determinada opinião não é uma opinião e sim uma notícia - uma opinião pode se tornar notícia ou não e se não se tornar notícia continuará sendo apenas uma expressão do pensamento - e falsa, pode decretar a prisão do opinador - promovido ou rebaixado a noticiador, a mentiroso - decretar sua prisão preventiva e ficar dias, semanas, meses e anos preso preventivamente.
Aliás, a preventiva é a prisão perpétua à 'brasileira' - se sabe quando começa, se desconhece quando termina.
A decisão monocrática só perde validade quando a autoridade coatora entender que já é tempo de submeter ao Plenário e este revogar à prisão.]
“Desinformação”? Interpretação pessoal de números? Mais: mentiras ditas fora das redes sociais, em outras “plataformas” – a imprensa, por exemplo – seriam permitidas?
É muito justo, claro, proibir o uso de “robôs”, identidades falsas e outras patifarias eletrônicas. Mas para que todo o resto? A única coisa boa que poderia acontecer com a lei das “fake news” é cair no arquivo morto. Notícias falsas, nas redes sociais ou em qualquer meio de comunicação, só podem ter um juiz: o público. É a ele que cabe decidir se acredita ou não no que lê, ouve ou vê – e a ele é que cabe punir, com o seu descrédito, quem está dizendo a mentira. Não pode ser tratado como um idiota, incapaz de julgar as informações que recebe. O resto é violar o artigo 5 da Constituição brasileira.
J.R. Guzzo, jornalista - O Estado de S. Paulo
Um mínimo de bom senso comum aconselharia os nossos parlamentares, antes de qualquer outra consideração, a pensarem no seguinte: será que eles teriam, sinceramente, a capacidade de legislar sobre a verdade? Mas o bom senso comum nunca foi um elemento obrigatório na vida política nacional – e o resultado, mais uma vez, está aí. Basta, no caso, fazer uma pergunta-chave: o que é uma notícia falsa? Só é possível proibir legalmente alguma coisa se a lei diz, com 100% de clareza, o que é essa coisa. Ninguém tem dúvida sobre o que é um homicídio. O Código Penal, no artigo 121, diz que homicídio é “matar alguém”. E “fake news”? O que é?
[o mais constrangedor é que se um ministro do Supremo decidir, de forma monocrática, que determinada opinião não é uma opinião e sim uma notícia - uma opinião pode se tornar notícia ou não e se não se tornar notícia continuará sendo apenas uma expressão do pensamento - e falsa, pode decretar a prisão do opinador - promovido ou rebaixado a noticiador, a mentiroso - decretar sua prisão preventiva e ficar dias, semanas, meses e anos preso preventivamente.
Aliás, a preventiva é a prisão perpétua à 'brasileira' - se sabe quando começa, se desconhece quando termina.
A decisão monocrática só perde validade quando a autoridade coatora entender que já é tempo de submeter ao Plenário e este revogar à prisão.]
“Desinformação”? Interpretação pessoal de números? Mais: mentiras ditas fora das redes sociais, em outras “plataformas” – a imprensa, por exemplo – seriam permitidas?
É muito justo, claro, proibir o uso de “robôs”, identidades falsas e outras patifarias eletrônicas. Mas para que todo o resto? A única coisa boa que poderia acontecer com a lei das “fake news” é cair no arquivo morto. Notícias falsas, nas redes sociais ou em qualquer meio de comunicação, só podem ter um juiz: o público. É a ele que cabe decidir se acredita ou não no que lê, ouve ou vê – e a ele é que cabe punir, com o seu descrédito, quem está dizendo a mentira. Não pode ser tratado como um idiota, incapaz de julgar as informações que recebe. O resto é violar o artigo 5 da Constituição brasileira.
J.R. Guzzo, jornalista - O Estado de S. Paulo