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sábado, 13 de novembro de 2021

O verdadeiro Marighella - Revista Oeste

Silvio Navarro e Paula Leal
 
Filme tenta reescrever a história do violento terrorista de esquerda, transformado em herói nacional pelas lentes de Wagner Moura  
 
Na noite de 4 de novembro de 1969, o baiano Carlos Marighella foi apanhado em uma emboscada pela equipe do delegado Sérgio Paranhos Fleury na região dos Jardins, em São Paulo, e acabou morto por cinco tiros. O prontuário de um dos maiores terroristas da esquerda armada no Brasil incluía assaltos a bancos e carros-fortes, além do sequestro do embaixador americano Charles Elbrick
A página 153 de A Ditadura Escancarada (Companhia das Letras), o segundo dos cinco volumes escritos pelo jornalista Elio Gaspari sobre os anos de chumbo, narra seus momentos finais: Marighella portava uma pasta preta com um revólver Taurus calibre 32, que usava em suas ações violentas, mas não teve tempo de sacá-lo. [Marighella tinha que ser abatido, a qualquer custo = era um assassino frio, sanguinário, cruel, inescrupuloso e que matava qualquer um, já que para ele quem morria e porque morria não importava, o importante era o cadáver - fosse de quem fosse - pelo impacto psicológico que causava. Saber mais, clique aqui, ou aqui, aqui, sobre ele ou outros assassinos.]
 Carlos Marighella | Foto: Divulgação
Carlos Marighella | Foto: Divulgação
Meio século depois, é neste ato final que a esquerda reinante na cena cultural do país se concentra para reescrever a biografia do guerrilheiro urbano virulento, que foi expulso do Partido Comunista e se tornou líder da ALN (Ação Libertadora Nacional). Pelo menos é essa a impressão de quem o viu tombar na tela do cinema, desarmado e solitário, assassinado cruelmente à queima-roupa dentro de um Fusca azul antes de ingerir uma cápsula de cianeto
Na nova narrativa, esse é o herói nacional, escritor de poemas e defensor da liberdade retratado em Marighella: o Guerrilheiro que Incendiou o Mundo, dirigido por Wagner Moura. O filme foi baseado no livro do jornalista Mário Magalhães — que faz questão de frisar na página 14 de sua obra: “Como sempre, estava desarmado”.
 
Não se trata aqui de uma crítica ao texto de Magalhães, mas à maneira como Wagner Moura enxerga e defende seu personagem-título. “Quando eu faço um filme sobre Marighella, evidentemente estou fazendo um filme que parte da minha admiração por Marighella e pelas pessoas que, no olho do furacão de uma ditadura militar, resolveram fazer alguma coisa contra aquele regime”, disse Moura em entrevista recente ao programa Roda Viva, da TV Cultura. 
 
Talvez as lentes do ator-diretor estejam embaçadas. Ele busca a redenção depois de ter vestido a pele do Capitão Nascimento, personagem de Tropa de Elite, alvo de um massacre da imprensa e dos colegas intelectuais de esquerda. Trocando em miúdos: foi quase um pedido de desculpas de Moura para ser reincluído no grupo de WhatsApp e voltar a frequentar a patota do Leblon.
Manchete de 1969, quando a Folha de S.Paulo era um jornal de notícias - Foto: Reprodução

O caixa da Cultura
A chegada do filme às telas do país na semana passada ocorreu mais de dois anos depois de estrear em vários festivais internacionais, como o de Berlim. E chegou fazendo barulho. Moura culpou o governo Jair Bolsonaro e a Agência Nacional de Cinema (Ancine) pela demora na exibição do longa-metragem. Foi além e chegou a dizer que se tratava de “censura e boicote”.

A balela de que os comunistas eram defensores da democracia convence menos ainda

Vamos aos fatos: o atraso se deu porque a O2, produtora do filme, estava inadimplente com a prestação de contas de outra produção. Segundo a Ancine, o projeto só passou a cumprir todos os requisitos no último mês e por isso foi liberado. Assim como tantas outras produções artísticas, Marighella se beneficiou do Fundo Setorial do Audiovisual, um dos mecanismos (legais) para financiamento público do setor, que investiu quase metade do orçamento do filme, avaliado em R$ 10 milhões.
 
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 Pouca gente sabe, mas era obrigatório a previsão de custo com escritório de advocacia nos projetos da Lei Rouanet, e a despesa era abatida a parte do custo operacional de quem realizava o projeto. Centena de milhões de reais em advocacia, todo ano. Eliminamos a obrigação.


Românticos de Cuba
Embora o filme esteja repleto de tiroteios, a versão light do terrorista confesso não faz jus ao discípulo de Stalin, que celebrava “a beleza que há em matar com naturalidade”. No seu Minimanual do Guerrilheiro Urbano, publicado em 1969, Marighella se orgulhava de afirmar que “ser ‘violento’ ou ‘terrorista’ é uma qualidade que enobrece qualquer pessoa honrada na luta contra a ditadura militar”. Ele ainda reserva um capítulo para ensinar ações aos camaradas: “Assaltos, invasões, execuções, sequestros, terrorismo, sabotagem, guerra de nervos”. Tudo é permitido em nome da luta armada.

A tentativa de humanizar o personagem com a história do seu filho cheira a pieguice e não convence. E a balela de que os comunistas eram defensores da democracia e que se viram obrigados a pegar em armas para salvar o Brasil da ameaça de ditadores fascistas convence menos ainda. “Ele era um patriota, ele amava o Brasil”, repete uma personagem devota em cena.

Se ainda estivesse vivo, o verdadeiro Carlos Marighella provavelmente não se reconheceria na pele do cantor Seu Jorge, que o interpreta no cinema. A escolha do ator para encarnar o guerrilheiro é, no mínimo, curiosa. Na vida real, Marighella era filho de uma negra baiana com um imigrante italiano. No máximo, um moreno claro. Na ficção, foi representado pelo ator e cantor negro Seu Jorge. Wagner Moura ergueu ali também a bandeira racial e do “racismo estrutural”? Sim, claro. O passado do pai italiano anarquista não é mencionado, nem sequer para justificar o sobrenome do terrorista.

A propósito, na esteira do tema étnico, um padre aparece explicando que Jesus só poderia ter sido negro. O padre justifica: quando Herodes mandou matar todas as crianças com menos de 2 anos, Jesus ainda bebê foi escondido no Egito e só conseguiu passar despercebido porque no deserto fazia parte da maioria esquecida pelo sistema. Para completar, um apelo ufanista: nos créditos finais, o público é brindado por uma cantoria do Hino Nacional Brasileiro realizada pelos atores abraçados em roda.

A velha imprensa já elegeu o longa sobre a versão do guerrilheiro travestido de herói como a melhor bilheteria nacional do ano. Com a concorrência minguada depois de um jejum forçado por conta da pandemia, com salas fechadas e medidas restritivas que afugentaram espectadores, não é difícil chegar ao topo do ranking. Além de contar com a torcida da mídia e da militância de esquerda, Moura também recebeu apoio das redes de cinema. 

Esse apoio não foi dado ao cineasta pernambucano Josias Teófilo. Ele é diretor do documentário Nem Tudo se Desfaz, que estreou em setembro deste ano, sobre os impactos das manifestações de junho de 2013 no cenário político nacional, que culminaram na ascensão do presidente Jair Bolsonaro. “Boa parte dos cinemas que procuramos para exibir o Nem Tudo se Desfaz se recusou a passar o filme, inclusive a alugar as salas, porque disseram que não queriam apresentar um filme com conteúdo político. Entretanto, passaram Marighella, que é um filme não só com conteúdo político, mas com discurso político e partidário atrelado”, afirmou. “Uma coisa são filmes que produzem polêmicas, como O Jardim das Aflições [documentário de Teófilo sobre a vida de Olavo de Carvalho] e Nem Tudo se Desfaz. Outra coisa são filmes que produzem factoides de polêmicas, como Marighella.” 

Marighella, o filme, não será capaz de reescrever a história. Amanhã, não teremos jovens deslumbrados desfilando com camisetas estampando o bigode do guerrilheiro baiano. Isso é coisa para a geração do esperto Wagner Moura. Ele sabe ganhar dinheiro tanto com a boina preta do capitão do Bope quanto com a vermelha do comandante Che Guevara.

Leia também “(Super) Heróis da liberdade”

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