Brasil torce o nariz para o multilateralismo e aposta num nacionalismo arrogante
Se há três áreas em que o Brasil tem protagonismo consolidado nos foros
internacionais, essas áreas são meio ambiente, direitos humanos e
migração. O temor é o Brasil encolher e retroceder justamente nas três,
não só pelo presidente eleito, Jair Bolsonaro, mas também pelo futuro
chanceler Ernesto Araújo e suas ideias extravagantes. Qualquer um que tenha participado de grandes encontros sobre meio
ambiente sabe, viu, constatou como a voz do Brasil é relevante, não só
pela Amazônia, mas pela grande biodiversidade brasileira. Como “Deus é
brasileiro”, não temos tsunamis nem terremotos, mas, sim, sol o ano
inteiro, água doce e salgada, florestas variadas, combustível fóssil e
renovável, solo fértil, vento e chuva. E uma das leis mais modernas na
área.
O Brasil também pode se orgulhar de, depois de vinte anos, ter feito a
transição do regime militar para a democracia sem um único tiro, uma
única gota de sangue, e assim passou a ser uma voz ouvida e respeitada
na área de direitos humanos – apesar de tudo, principalmente do horror
medieval nas penitenciárias e cadeias comuns. Por fim, o povo brasileiro é uma síntese de todas as etnias e dos mais
variados sobrenomes do mundo todo. O nosso País é lindamente multiétnico
e acolhedor. Isso tem enorme valor, atrai respeito, admiração e espaço
nos grandes debates sobre migração, como na construção do Pacto Global
de Migração, que reúne 160 países.
É surpreendente, portanto, a forma como o futuro chanceler (faltam
alguns dias...) Ernesto Araújo puxou o tapete do atual, Aloysio Nunes
Ferreira. Em Marrakesh, o ainda chanceler subscrevia o pacto em nome do
Brasil. Em Brasília, seu quase sucessor anunciava, simultaneamente, que o
Brasil vai sair do pacto. Nada poderia ser mais antidiplomático. “Foi mais do que surpreendente, foi chocante”, disse Nunes Ferreira por
telefone, depois de ter reagido a Ernesto Araújo pelo mesmo veículo que
ele usara para negar o pacto de migração: o Twitter. Novos tempos.
São sinais preocupantes da política externa, já rechaçados pela China,
pelo Egito, agora pela Alemanha, que põe o pé no freio no acordo União
Europeia-Mercosul, e pela Liga Árabe, que acaba de entregar uma carta no
Itamaraty questionando a mudança da embaixada brasileira, de Tel-Aviv
para Jerusalém, o que agrada a Israel e irrita todo o mundo árabe. Essas manifestações e ações de Araújo – logo, de Bolsonaro – seguem um
único mentor, Donald Trump, e uma ideologia, o antimultilateralismo. Sai
a adesão aos órgãos multilaterais ou regionais, como ONU, OMC,
Mercosul, e entra em cena um nacionalismo a la Trump: voltado para
dentro, voluntarioso, arrogante, de confronto. [ainda confiamos que o bom senso prevaleça e que Bolsonaro entenda que a relação custo beneficio não compensa, mesmo considerando a posição de Donald Trump, não compensa para atender interesses menores de Israel desgostar os árabes.
A mudança da embaixada brasileira é um assunto que pode perfeitamente ser adiado.]
Todas as sinalizações externas do governo Bolsonaro replicam, sem tirar
nem por, as posições de Trump: contra o Acordo de Paris, contra o Pacto
de Migração, beligerância com a China, alinhamento explícito a Israel,
implicância com a ONU e a OMC... Só que, assim como o Brasil não são os
EUA, Bolsonaro não é Trump. E nem tudo o que é bom para os EUA é bom
para o Brasil. Se as exportações, a agricultura, a pecuária, os minérios e os programas
de cooperação passarem a ser afetados, a coisa pode deixar de ser só
pitoresca e ficar séria. Até por isso, já começa o recuo na resistência à
China.
Não falta quem questione o próprio papel do deputado Eduardo Bolsonaro,
filho do presidente eleito, e suas credenciais para ser a voz e a cara
do Brasil no exterior. Sabatinar o futuro chanceler?! Falar pelo Brasil
nos EUA sem passar pela embaixada ou pelos consulados?! Se o PT rachou o Itamaraty, essa postura e essas ingerências também vão rachar. A tendência é virar uma guerra e guerras nunca são boas.
Eliane Cantanhêde - O Estado de S. Paulo