O jogo do ministério, com seus balões de ensaio e boatos, é um divertimento que acaba no dia em que o Diário Oficial publica a lista dos nomeados
O jogo do ministério, com seus balões de ensaio e boatos, é um divertimento que acaba no dia em que o Diário Oficial publica a lista dos nomeados. Contudo, os movimentos que ocorrem nos bastidores acabam revelando a alma do governo que se forma. Descontada a maneira silenciosa e cirúrgica com que Paulo Guedes forma sua equipe na área econômica, até agora a principal decisão de Bolsonaro foi a transferência do general da reserva Augusto Heleno para o Gabinete de Segurança Institucional. Ele estava designado para a Defesa e foi deslocado pouco depois da escolha de Sergio Moro para a Justiça. Trocou um ministério com gabinete fora do Planalto por outro a poucos metros da sala do presidente.
O Ministério da Educação de Bolsonaro tornou-se uma grelha. Mozart Ramos, diretor do Instituto Ayrton Senna, foi vetado pela bancada evangélica sem ter sido convidado. O procurador Guilherme Schelb, da simpatia dos pastores, viu-se frito. Ao fim do dia, foi escolhido o professor Ricardo Vélez Rodriguez, da Federal de Juiz de Fora (MG), que lecionou na Escola de Comando e Estado-Maior do Exército. Do episódio, resulta que Bolsonaro colocou no Ministério da Educação uma pessoa com quem nunca trocou duas palavras ou leu duas páginas.
A formação de um governo obedece a uma lógica própria. Um terço dos ministros é formado por pessoas que o presidente queria colocar exatamente onde ficaram, como Paulo Guedes. No segundo terço, o escolhido vai para a equipe, mas cai em outro lugar, como Augusto Heleno. No terceiro, entram pessoas que o presidente mal conhecia. A mecânica da formação da equipe acaba sendo tão significativa quanto as escolhas. Temer disse que nomearia notáveis. Armou sua equipe pelo velho método e estabeleceu uma marca na História universal: dois de seus ministros acabaram na cadeia (Geddel Vieira Lima e Henrique Alves). Outros dois tiveram os pais e padrinhos políticos encarcerados (Helder Barbalho e Leonardo Picciani). No governo Dilma, Joaquim Levy pensou que havia sido escolhido para o Ministério da Fazenda, mas caiu num comissariado, do qual fugiu. Na competição que produz ministros, às vezes ganham relevo aqueles que decidem não sê-lo. Ilan Goldfajn deixou o Banco Central. Já o nome do general da reserva Oswaldo Ferreira para a área de infraestrutura era pedra cantada. Ele participou do planejamento da campanha de Bolsonaro e chegou a dar entrevistas sobre projetos. Decidiu ficar fora do governo.
O ‘imprevisto’ de Moro
O futuro ministro Sergio Moro defendeu a delegada Érika Marena, coordenadora da Operação Ouvidos Moucos, que em 2017 resultou na prisão do reitor Luiz Carlos Cancellier, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Levado para uma penitenciária, ele vestiu uniforme laranja, foi algemado e lá dormiu uma noite. Sua prisão foi pedida pela delegada e a Justiça, que a autorizou, suspendeu-a no dia seguinte, pois não viu no pedido da delegada “fatos específicos dos quais se possa defluir a existência de ameaça à investigação.”
Livre, o professor matou-se, atirando-se do alto de um shopping de Florianópolis. Quando a Ouvidos Moucos foi espetacularizada, Cancellier e outros professores eram acusados de terem desviado R$ 80 milhões de um programa da UFSC. Essa informação revelou-se falsa e foi divulgada antes mesmo que Cancellier fosse ouvido. A cifra referia-se à verba total do programa.
A delegada Érika Marena é considerada uma policial competente e teve um relevante desempenho na fase inicial e decisiva da Operação Lava-Jato. Ao informar que ela assumiria o Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional do Ministério da Justiça, Moro tratou do caso de Cancellier e disse o seguinte: “Foi uma tragédia, algo trágico e toda a solidariedade aos familiares do reitor, mas foi um infortúnio imprevisto na investigação. A delegada não tem responsabilidade quanto a isso”. Falta definir “infortúnio imprevisto na investigação”. Ou pelo menos, quais são os infortúnios que as investigações podem prever. Prisões desnecessárias, humilhações e espetacularizações talvez estejam entre eles.
OUTRO ESPETÁCULO
Há um ano, noutro caso espetacular, o empresário Ricardo Saud, da J&F dos irmãos Batista, contou que sua organização corrompia políticos e esfriava as propinas usando mais de cem escritórios de advocacia que simulavam serviços. Entre os políticos, estava o deputado Fábio Faria e, entre os escritórios, o do advogado Erick Pereira. (Na sua delação, Saud chamou-o de Erick Faria.) Passou-se um ano, a procuradora-geral da República, Raquel Dodge, chamou Saud de “pretenso colaborador” e pediu o arquivamento do processo porque “não foi possível colher nenhum elemento probatório que demonstrasse que o investigado (deputado Fábio Faria) cometeu os referidos delitos”. E que “a documentação juntada aos autos pelo colaborador em nada demonstra que os eventos que narra ocorreram”. O pedido da procuradora foi atendido pela ministra Rosa Weber, do STF.
Quanto ao advogado Erick Pereira, ele juntou aos autos as provas dos serviços prestados pelo escritório. O distinto público foi enganado duas vezes, primeiro pela JBS fazendo-se passar por uma “campeã nacional”. Depois pelos seus donos e diretores enfiando cascalhos nas suas pretensas delações.
BEIJO DA MORTE
Na terça-feira, um veterano parlamentar ouviu um colega do PSOL saudando a possível escolha de Mozart Ramos, diretor do Instituto Ayrton Senna, para o Ministério da Educação.
Foi rápido: “Já era.”
FOGO AMIGO
Durante a campanha, o general Hamilton Mourão contou que estava lendo uma biografia de seu colega “Stonewall” Jackson. Ele foi um dos maiores generais do Sul rebelde na Guerra da Secessão (1861/1865). Ganhou o apelido de “Muralha” ao conter o inimigo, decidindo a primeira grande batalha do conflito. Era um tipo estranho. Cristão fervoroso, lutava pelo Sul, mas condenava a escravidão.
A vida de “Stonewall” pode inspirar Mourão. Primeiro, porque ele falava pouco e escondia tudo. Sempre ia para a linha de frente, mas numa noite tomou três tiros de sua própria tropa durante uma patrulha noturna. “Stonewall” tornou-se a mais famosa vítima de fogo amigo das forças militares americanas.
Elio Gaspari - O Globo