Os brasileiros começam a reagir à cassação dos direitos individuais
Os ministros nem haviam guardado no armário a capa preta e os incumbidos de liderar a guerra contra o antagonista invisível já agiam com a prepotência de quem se acha munido de superpoderes. Com a arrogância de quem convivera desde criancinha com o inimigo que ninguém conhecia, governadores e prefeitos suprimiram o direito de ir e vir por tempo indeterminado, ordenaram que todo mundo ficasse em casa, fecharam todas as escolas, públicas e privadas, bloquearam acessos às cidades que administravam, interditaram estabelecimentos comerciais e indústrias. [lembravam no agir os tempos dos fiscais do Sarney, só que se intitulavam os fiscais dos supremos e fracassaram tal qual aqueles.] Avisaram que só deveriam usar máscara os profissionais de saúde (voltaram atrás quando a Organização Mundial da Saúde mudou de ideia e inaugurou uma nova palavra de ordem: use máscara), tornaram obrigatório o uso de luvas para impedir a disseminação do vírus que acampava em qualquer superfície. Em poucas horas, o autoritarismo epidêmico contaminou os escalões inferiores e se intensificou o confisco de direitos individuais indissociáveis do Estado Democrático de Direito.
Amedrontados com um inimigo onipresente e invisível, aturdidos com o noticiário dos jornalistas de velório [estes e estas, que possuíam algum renome, se especializaram via mestrado em contagem de cadáveres, ´foram discretamente lembrados que quando a pandemia cessasse a permanência deles, ou delas, na função de âncora dependeria da precisão na contagem dos falecidos e do quanto compungida fosse a 'cerimônia' do encerramento do noticioso e suas fisionomias; houve até uma suprema decisão estabelecendo como deveria ser a contagem e apresentação pelo Ministério da Saúde, dos números dos defuntos de cada dia] milhões de brasileiros demoraram quase nove meses para compreender que a preservação da liberdade não é menos importante que a defesa da vida, e que o combate à pandemia pode ser travado sem que a economia se submeta à falência epidêmica. Ficou evidente que a fome e o desemprego também matam. E então a paciência do povo chegou ao fim.
Em 13 de dezembro de 1968, ao justificar seu voto contrário à aprovação do Ato Institucional nº 5, o vice Pedro Aleixo explicou ao presidente Costa e Silva que não o atormentava o uso do duro instrumento político-jurídico pelo chefe do governo militar ou por seus ministros. “O problema é o guarda da esquina”, advertiu o jurista mineiro. Faltou um Pedro Aleixo na sessão do Supremo que transformou governantes e prefeitos em tiranetes de ópera-bufa. Os guardas municipais, primos dos guardas de esquina, entraram em ação no minuto seguinte.
Também chegara a hora de encerrar a quarentena escolar mais rigorosa, extensa e absurda do mundo. Em São Paulo, não há aulas presenciais desde março. Até recentemente, o isolamento da geração covid era defendido a socos e cotoveladas por professores e funcionários do sistema educacional, e endossado pela imensa maioria dos pais de alunos. A primeira rachadura na muralha foi produzida por grupos de pediatras e psicólogos aflitos com os danos impostos à saúde física e mental de crianças e adolescentes.
Os ventos viraram de vez com o surgimento do movimento Escolas Abertas, criado por mães inconformadas. Amparadas em 35 mil assinaturas, e em argumentos irrefutáveis divulgados nas redes sociais e em grupos de WhatsApp, as militantes acuaram a prefeitura de São Paulo com uma ação popular. Uma vitória em primeira instância obrigou a prefeitura e o governo do Estado a apresentar um relato oficial sobre o pouco que até agora fizeram e o muito que terão de fazer para que as escolas sejam reabertas em 1º de fevereiro. A mobilização dos pais também induziu o governador João Doria a alterar o plano de combate à pandemia, permitindo que as escolas permaneçam abertas mesmo que a curva desenhada pela pandemia oscile para cima. “Nenhum país permaneceu com as escolas fechadas durante tanto tempo”, registra a empresária Lana Romani, uma das fundadoras do Escolas Abertas. “Dezenas de estudos científicos mostram que manter as aulas presenciais não aumenta a contaminação pelo vírus e que a transmissão, tanto de criança para criança quanto de criança para adulto, é muito pequena. Estamos tirando de uma geração a chance de ter um futuro melhor.”
Em território paulista, o governador só acredita no que lhe dizem os integrantes do Centro de Contingência, formado por sumidades de distintas tribos da ciência e da medicina. Aconselhado por eles, Doria encomendou a vacina chinesa, marcou para 25 de janeiro o início da imunização e, sem revelar os estudos que medem o grau de eficácia do que chama de vacina do Butantan, passou a acusar a Anvisa de fazer o diabo para retardar a invencível ofensiva contra a covid. Foi certamente esse conselho de sábios que recomendou a Doria o endurecimento da guerra contra a pandemia. Ignora-se se também o aconselharam a anunciar a má notícia só depois das eleições municipais. “Uma definição de loucura é continuar fazendo as mesmas coisas e esperar resultados diferentes”, constata a frase atribuída a Albert Einstein. Sobram evidências de que o lockdown e as políticas de isolamento (mais ou menos severas) não ajudaram a salvar uma única vida.
Na contramão dos loucos por um lockdown, as autoridades japonesas abdicaram do confinamento horizontal e se dedicaram a convencer a população de que o essencial era evitar os “3Cs”. C é a inicial das três expressões do idioma japonês que, em português, significam espaços fechados, aglomerações e locais que dificultam o distanciamento. Ao percorrer o caminho do meio, a nação asiática, cuja população idosa é proporcionalmente a maior do mundo, transformou-se num caso exemplar de sucesso no controle da pandemia: 26 mortos por milhão de habitantes, de acordo com os dados registrados na terça-feira, 29. É um número extraordinariamente baixo se comparado às cifras da Bélgica (1.657), da Itália (1.190) ou da Espanha (1.066).
Avesso a examinar com boa vontade opiniões que contrariem os especialistas de estimação, Doria avançou com determinação pelo caminho que leva ao penhasco. Dias depois de qualificar de fake news a informação correta — a quarentena para todos seria ressuscitada assim que terminasse a apuração do segundo turno —, Doria anunciou o retorno à fase vermelha de todos os municípios e comunicou que os brasileiros de São Paulo deveriam ficar em casa nos feriados do Natal e do Ano-Novo.
O descontentamento causado pela volta dessa espécie de prisão domiciliar tornou-se um pote até aqui de cólera com uma das mais curtas, mais desastradas e mais inoportunas viagens internacionais planejadas por um político. Como revelou Oeste com exclusividade, no dia seguinte ao do decreto que intensificou o confinamento o governador mandou os três filhos para Trancoso, no litoral da Bahia, e embarcou para Miami com a mulher, Bia. Pretendia ficar dez dias por lá. Voltou horas depois do desembarque, tangido pela tempestade de críticas que varreu as redes sociais. O pretexto para o regresso indesejado foi o providencial ataque de um pelotão de coronavírus ao vice Rodrigo Garcia. Num vídeo gravado já no Palácio dos Bandeirantes, Doria pediu desculpas pelo erro. Mas o estrago estava feito. A viagem que não houve favoreceu a mobilização de prefeitos que, pressionados por comerciantes e empresários locais, resolveram ignorar ostensivamente as ordens do rei nu.
Cerca de 20 governantes municipais, vários deles filiados ao PSDB, mantiveram o comércio aberto entre 25 e 27 de dezembro. E prometem reprisar o desafio de 1º a 3 de janeiro de 2021. “Nesse período, temos o maior fluxo de turistas”, justificou Alexandre Barbosa, prefeito de Santos. “E discordamos da forma como a medida foi implementada.” Prefeito de São Sebastião, Felipe Augusto avalizou a discordância: “Temos uma condição diferenciada e a cidade está protegida”, afirmou. “Todas as vezes que o governo anunciou que iria mudar de fase e criar restrições aos comerciantes e empresários nós seguramos a onda.” Durante uma entrevista ao programa Os Pingos nos Is, da Rádio Jovem Pan, Everton Sodario, prefeito de Mirandópolis, foi taxativo: “A população precisa e quer trabalhar”.
Meu pedido de desculpas aos brasileiros de SP. Reconheço o erro e esclareço a viagem que fiz aos Estados Unidos. Já de volta a São Paulo em menos de 24 horas, reassumo o Governo do Estado. pic.twitter.com/zc4qqDgZEH
— João Doria (@jdoriajr) December 24, 2020
João Doria não foi o único a descobrir que os governados chegaram ao ponto de exaustão. Em 26 de dezembro, o governador do Amazonas, Wilson Lima (PDS), decretou o fechamento do comércio, que passaria a atender apenas por meio de delivery ou drive-thru. Na manhã daquele dia, manifestantes ocuparam as principais avenidas da capital, gritando a palavra de ordem: “Queremos trabalhar!”. “Não é justo que em plena festa de fim de ano o governador aplique um golpe desses nos comerciantes e varejistas do Centro e de toda Manaus”, resumiu Givanildo Marcos Maia, presidente da Associação dos Trabalhadores de Comércio. Wilson Lima recuou no dia seguinte.
Sobrou até para autoridades do Judiciário. Há duas semanas, o juiz Raphael Campos, da 2ª Vara de Búzios, resolveu impor um lockdown ao município no litoral fluminense. Determinou o fechamento de estabelecimentos comerciais, limitou o acesso às praias e exigiu que todos os turistas dessem o fora em 72 horas. Imediatamente, a população foi às ruas exigir a revogação do surto autoritário, que acabou suspenso por Claudio de Mello Tavares, presidente do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro.
Manaus tá pegando fogo. pic.twitter.com/BldkBm3rix
— Joanasoares (@Joanaso60544788) December 26, 2020
Colaboraram Artur Piva, Branca Nunes, Cristyan Costa e Paula Leal