Como uma ilusão política cresceu como desafio ao
imperialismo e terminou numa tragicomédia, sem chance de recuperação do
dinheiro público consumido
Começou
com uma ilusão diplomática no governo Fernando Henrique Cardoso. Avançou como
política de desafio dos governos Lula e Dilma ao imperialismo americano, a
pretexto da preservação da “soberania” e da “dignidade” do país. Terminou num
desastre milionário, sem chance de recuperação de um único centavo do dinheiro
público consumido e, ainda, com a possibilidade de perdas adicionais até dez vezes
superiores numa disputa jurídica internacional. Essa é, em síntese, a história
da empresa binacional criada pelo Brasil e Ucrânia há 12 anos.
O Brasil
enterrou R$ 484 milhões entre 2003 e 2015 num delirante projeto de lançamento
do foguete ucraniano Cyclone-4, comprovam ordens bancárias recebidas pela
empresa binacional, recuperadas no fim do ano passado por iniciativa do Senado.
Além do prejuízo, restam ruínas de concreto na paisagem de Alcântara, no
Maranhão — luxo do tipo somente permissível a subdesenvolvidos. Tudo
começou em 1998, quando a estatal brasileira Infraero assinou um acordo com as
empresas Yuzhnoye, ucraniana, e a Fiat Avio, italiana, para lançamento de
foguetes da americana Motorola em Alcântara. Os Estados Unidos exigiram
salvaguardas às suas patentes tecnológicas que permeiam 80% dos satélites
montados e comercializados no mundo.
O governo
do PSDB aceitou as imposições e remeteu o acordo ao Congresso na abertura da
temporada eleitoral de 2002. Nunca foi votado, mas a crítica à submissão aos
EUA virou peça de marketing da campanha presidencial do Partido dos
Trabalhadores. Lula
assumiu e mandou a Kiev seu ministro da Ciência e Tecnologia, Roberto Amaral.
Com dez meses de governo, criou a binacional Alcântara Cyclone Space e anunciou
“com entusiasmo” a assinatura de salvaguardas tecnológicas com a Ucrânia como
alternativa às exigências americanas. O texto, em boa parte traduzido do
assinado pelo antecessor com os EUA, foi aprovado em 24 horas no Congresso em
votação conduzida pelo PT. A empresa foi formalizada em 2005. Seu capital de R$
350 milhões logo aumentou 757%, para R$ 3 bilhões.
Em 2012,
foram paralisadas a contratação de equipamentos na Ucrânia e as obras em
Alcântara. O governo Dilma se topou com a realidade: o foguete ucraniano só
poderia ser lançado se o acordo com os EUA estivesse em vigor. Isso porque o
Cyclone-4 incorpora tecnologias de patente americana. Para piorar, em 2014 a
Rússia invadiu a Ucrânia. Dilma
ainda insistiu. Criou uma comissão interministerial para ver se poderia salvar
o projeto. Mas o relatório, sigiloso, foi definitivo: “Todas as evidências e
todos os depoimentos apontam unanimemente: sem o acordo de salvaguardas com os
EUA, qualquer lançamento fica inviabilizado.”
A
presidente jogou a toalha numa tarde de sábado, em maio de 2015. Desfez o
acordo com a Ucrânia. Dois meses atrás, o governo Temer apresentou aos EUA nova
proposta de acordo de salvaguardas tecnológicas. Ainda não recebeu resposta —
dependeria das negociações entre a Boeing e a Embraer. Só agora o
custo dessa tragicomédia política e diplomática começou a ser exumado. As
perdas já comprovadas foram de R$ 484 milhões. Com as pendências jurídicas, a
conta final do delírio poderá ser muito maior.
José Casado - O Globo