Por Carolina Brígido
Mudar de ideia é comum entre os ministros da Corte. Mas é inusitado que
se julgue o mesmo assunto tantas vezes como ocorre com aquele do
cumprimento de pena
Ocorre que, não raro, a jurisprudência tem se convertido em um conceito elástico. No próprio caso da prisão em segunda instância, mesmo havendo uma definição sobre o tema, ministros concederam habeas corpus a condenados cujo julgamento obedeceu à nova ordem estabelecida em 2016, colocando em xeque a solidez da nova regra. O ministro Ricardo Lewandowski, por exemplo, mandou soltar pelo menos 78 condenados em segunda instância desde 2017, quando a nova norma já estava em vigor. O magistrado é a favor da prisão após o trânsito em julgado. Os ministros Marco Aurélio Mello e Celso de Mello também continuaram decidindo pela soltura de presos, por considerarem que ainda não há um entendimento definitivo sobre a questão. Na avaliação desses ministros, o tema ainda precisa ser analisado em uma ação ampla, com o chamado efeito erga omnes , jargão jurídico para definir normas vinculantes, que valem para todos os casos e devem ser cumpridas obrigatoriamente.
Quando um ministro muda seu voto, a modificação se dá, normalmente, ao longo de um mesmo julgamento. É natural que isso aconteça até a votação ser concluída e o resultado anunciado. Ocorreu recentemente com o presidente do STF, o ministro Dias Toffoli. Em dezembro de 2017, ele votou pela impossibilidade de assembleias legislativas revogarem prisões de deputados estaduais decretadas pela Justiça. O julgamento foi interrompido e retomado em maio deste ano. Toffoli, então, mudou de ideia e votou em sentido contrário, garantindo a maioria para ampliar os poderes dos legislativos locais.
Em 2012, quando a Corte julgava o processo do mensalão, o ministro Marco Aurélio Mello também mudou seu voto. Primeiro, condenou por formação de quadrilha quatro réus: o ex-presidente do PP Pedro Corrêa; o ex-assessor do partido João Cláudio Genu; o empresário Enivaldo Quadrado; e o advogado Rogério Tolentino. Dias depois, reajustou o voto e absolveu o quarteto. A mudança empatou a votação em cinco votos pela condenação e cinco pela absolvição. Pela regra penal, nesses casos, o réu é beneficiado. Os quatro foram condenados por outros crimes, mas a absolvição por formação de quadrilha atenuou a pena total dos réus — que, hoje, já estão em liberdade.
De um modo geral, Marco Aurélio Mello não se importa em mudar de opinião sobre determinado assunto. Certa vez, durante uma discussão em plenário, um dos colegas alertou sobre o fato de que, em um processo semelhante, ele votara de maneira oposta. O ministro respondeu: “Ora, não me exija coerência”. Em setembro de 2017, Marco Aurélio Mello votou pela obrigação do poder público de fornecer medicamento de alto custo a pessoas sem condições financeiras, desde que o remédio tenha sido previamente registrado na Anvisa. Em julho do ano passado, mudou uma nuance do voto: concordou que o medicamento não tenha registro prévio para ser fornecido, mas exigiu que o paciente comprove que a substância seja indispensável ao tratamento.
Carlos Ayres Britto, ministro aposentado do STF, considera as mudanças de opinião algo natural — desde que representem de fato a convicção do juiz. Ainda assim, ele não se lembra de ter mudado um voto durante os nove anos em que ocupou uma das 11 cadeiras da Corte. “Não tenho compromisso com meus próprios erros. Passei a me policiar, a policiar meu ego. O que interessa não é o que eu sou, mas o que a norma é”, analisou. “Na área jurídica, a gente tem de estar aberto para a mudança de entendimento. Não é feio, não é esquisito, não é censurável, desde que haja honestidade intelectual”, concluiu.
Em seu livro de memórias, o ministro aposentado Paulo Brossard, morto em 2015, contava um episódio de mudança de entendimento — que, de tão incomum em sua carreira, foi digno de nota. Ele afirmou que, em 1990, votou a favor das promoções a que os militares anistiados tinham direito. Concedeu o benefício a toda a escala hierárquica, até o generalato. Dois anos depois, foi convencido de que as promoções na caserna dependiam da análise de cada caso — e, portanto, não poderiam ser automáticas. Levou o processo ao plenário para apresentar seu novo entendimento. “No caso, eu modifiquei o meu voto, para grande desagrado, naturalmente, da pessoa que estava patrocinando ( a causa ), que era militar, formado em Direito também, e que veio falar comigo, muito lamurioso”, escreveu. “Eu fiquei muito aborrecido, mas me convenci efetivamente disso, e então não posso, em nome de uma suposta coerência, manter um entendimento que hoje considero o contrário”, completou.
O professor de Direito Michael Mohallem, da Fundação Getulio Vargas do Rio de Janeiro (FGV-Rio), explicou que, juridicamente, mudanças de voto não representam problema, desde que não estejam atreladas ao casuísmo. “No campo do Direito e num tribunal constitucional, é importante tratar com naturalidade o espaço do convencimento. É a razão do colegiado. A lei não é uma ciência exata”, afirmou. No entanto, Mohallem considera importante analisar se as mudanças nos votos ocorrem por convencimento ou decorrem do momento político, conjuntura econômica ou se a decisão tem potencial para atingir alguém específico. “A questão é se essas mudanças representam o livre convencimento do juiz ou se são motivadas casuisticamente. Nesse caso, haveria um desvio por parte do ministro”, observou.
[por ter tudo a ver com a INSEGURANÇA JURÍDICA apontada por Mohallem, transcrevemos parte de entrevista na qual ele aponta novo buraco na corroída estrutura da INsegurança JURÍDICA no Brasil.
Vejamos:
"BRP – Parece estranho, mas o STF vai decidir se o País vai aplicar ou não um dispositivo constitucional?
Michael Mohallem – Sim. O instrumento serve para isso. A ação
direta de constitucionalidade é proposta quando há uma dúvida se uma lei
específica é constitucional ou não. Nesse caso, há uma norma que está
em vigência dizendo que é constitucional prender após segunda instância.
Só que, como há muitos casos que questionam isso, essa ação serve para
solidificar de uma vez o entendimento. Ela diz: ‘Eu quero que o Supremo
declare de uma vez que isso é constitucional e por meio dessa ação ela
tem efeito vinculante’. A partir dessa decisão do Supremo, os juízes de
outras instâncias estariam condicionados a seguir esse mesmo
entendimento, para dizer se o dispositivo do Código do Processo Penal é
condizente com a Constituição."
Salvo engano, o entrevistado optou por uma resposta enviesada, estilo política, de forma a não escancarar de vez o buraco, o abismo, da INSEGURANÇA JURÍDICA que impera no Brasil.
Só que a própria pergunta conspira contra qualquer resposta política.
Afinal, qual sentido tem uma Corte Constitucional, criada pela própria Constituição que está sob sua guarda, ter poderes para decidir se um dispositivo constitucional deve ser aplicado ou não - a simples procedência da pergunta é a prova incontestável da INSEGURANÇA JURÍDICA reinante no Brasil e convalidada pela Corte Suprema.]
No caso da revisão da execução da pena após condenação em segunda instância, o entendimento da maioria, firmado em 2016, previa que os tribunais superiores avaliariam apenas filigranas jurídicas sobre a constitucionalidade da aplicação da lei. O embasamento da condenação, feito a partir da coleta de provas, seria, portanto, concluído na primeira e na segunda instâncias. Daí a possibilidade de prisão.
Nos Estados Unidos, tampouco há um relator do processo, como no Brasil. Mas, ao final do julgamento, um dos ministros que integram a maioria formada é escolhido para redigir o acórdão — ou seja, um resumo do que foi decidido. No livro Supreme conflict , a jornalista Jan Crawford Greenburg conta que o ministro Anthony Kennedy, hoje aposentado, foi escolhido redator para o acórdão de um dos julgamentos mais polêmicos de 1992. Um homem chamado Daniel Weisman pedira que a Suprema Corte proibisse um rabino de fazer uma oração na cerimônia de formatura de uma escola pública. Achava que o poder público não deveria obrigar sua filha a participar de prática religiosa. Weisman argumentou que a oração violava a Primeira Emenda da Constituição dos Estados Unidos, que separa Estado e religião. A defesa da escola, por sua vez, argumentou que a pregação era sobre tolerância e liberdade — portanto, não haveria coerção religiosa. Ponderou também que não era razoável excluir a religião da vida das pessoas.
Época - Coluna Carolina Brígido