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segunda-feira, 21 de outubro de 2019

As atípicas idas e vindas da prisão em segunda instância no STF - Revista Época

Por Carolina Brígido
Mudar de ideia é comum entre os ministros da Corte. Mas é inusitado que se julgue o mesmo assunto tantas vezes como ocorre com aquele do cumprimento de pena

Em 2009, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes votou contra a prisão de um condenado por tribunal de segunda instância. Para ele, o correto seria o réu aguardar em liberdade até o julgamento do último recurso. A maioria dos ministros concordou com a tese, e a regra passou a vigorar no país. A jurisprudência se firmara calcada nesse processo, norteando as decisões seguintes.
Sete anos depois, Mendes mudou de ideia e, num processo sobre o mesmo assunto, votou pela execução antecipada da pena — ou seja, pela possibilidade de prisão assim que a condenação for confirmada pela segunda instância. O novo voto de Mendes, aliado a mudanças na composição do tribunal nos anos anteriores, inverteu a orientação da Corte. Em 2016, a regra passou a ser prender condenados em segunda instância. 

Ocorre que, não raro, a jurisprudência tem se convertido em um conceito elástico. No próprio caso da prisão em segunda instância, mesmo havendo uma definição sobre o tema, ministros concederam habeas corpus a condenados cujo julgamento obedeceu à nova ordem estabelecida em 2016, colocando em xeque a solidez da nova regra. O ministro Ricardo Lewandowski, por exemplo, mandou soltar pelo menos 78 condenados em segunda instância desde 2017, quando a nova norma já estava em vigor. O magistrado é a favor da prisão após o trânsito em julgado. Os ministros Marco Aurélio Mello e Celso de Mello também continuaram decidindo pela soltura de presos, por considerarem que ainda não há um entendimento definitivo sobre a questão. Na avaliação desses ministros, o tema ainda precisa ser analisado em uma ação ampla, com o chamado efeito erga omnes , jargão jurídico para definir normas vinculantes, que valem para todos os casos e devem ser cumpridas obrigatoriamente.

Uma nova mudança de postura da parte de Mendes se consolidou neste ano. Ele deverá rever seu entendimento sobre o tema. Não é inédito que um magistrado mude de ideia ao longo do tempo. Afinal, trata-se de um cargo indemissível, e a sociedade passa por transformações ao longo dos anos. Mas é pouco comum que o STF julgue um mesmo assunto tantas vezes, mediante tantas alterações de entendimento. O caso sobre a segunda instância foi a plenário uma vez em 2009 e três em 2016.

Quando um ministro muda seu voto, a modificação se dá, normalmente, ao longo de um mesmo julgamento. É natural que isso aconteça até a votação ser concluída e o resultado anunciado. Ocorreu recentemente com o presidente do STF, o ministro Dias Toffoli. Em dezembro de 2017, ele votou pela impossibilidade de assembleias legislativas revogarem prisões de deputados estaduais decretadas pela Justiça. O julgamento foi interrompido e retomado em maio deste ano. Toffoli, então, mudou de ideia e votou em sentido contrário, garantindo a maioria para ampliar os poderes dos legislativos locais. 

Em 2012, quando a Corte julgava o processo do mensalão, o ministro Marco Aurélio Mello também mudou seu voto. Primeiro, condenou por formação de quadrilha quatro réus: o ex-presidente do PP Pedro Corrêa; o ex-assessor do partido João Cláudio Genu; o empresário Enivaldo Quadrado; e o advogado Rogério Tolentino. Dias depois, reajustou o voto e absolveu o quarteto. A mudança empatou a votação em cinco votos pela condenação e cinco pela absolvição. Pela regra penal, nesses casos, o réu é beneficiado. Os quatro foram condenados por outros crimes, mas a absolvição por formação de quadrilha atenuou a pena total dos réus — que, hoje, já estão em liberdade.

De um modo geral, Marco Aurélio Mello não se importa em mudar de opinião sobre determinado assunto. Certa vez, durante uma discussão em plenário, um dos colegas alertou sobre o fato de que, em um processo semelhante, ele votara de maneira oposta. O ministro respondeu: “Ora, não me exija coerência”. Em setembro de 2017, Marco Aurélio Mello votou pela obrigação do poder público de fornecer medicamento de alto custo a pessoas sem condições financeiras, desde que o remédio tenha sido previamente registrado na Anvisa. Em julho do ano passado, mudou uma nuance do voto: concordou que o medicamento não tenha registro prévio para ser fornecido, mas exigiu que o paciente comprove que a substância seja indispensável ao tratamento. 

Carlos Ayres Britto, ministro aposentado do STF, considera as mudanças de opinião algo natural — desde que representem de fato a convicção do juiz. Ainda assim, ele não se lembra de ter mudado um voto durante os nove anos em que ocupou uma das 11 cadeiras da Corte. “Não tenho compromisso com meus próprios erros. Passei a me policiar, a policiar meu ego. O que interessa não é o que eu sou, mas o que a norma é”, analisou. “Na área jurídica, a gente tem de estar aberto para a mudança de entendimento. Não é feio, não é esquisito, não é censurável, desde que haja honestidade intelectual”, concluiu.

Em seu livro de memórias, o ministro aposentado Paulo Brossard, morto em 2015, contava um episódio de mudança de entendimento — que, de tão incomum em sua carreira, foi digno de nota. Ele afirmou que, em 1990, votou a favor das promoções a que os militares anistiados tinham direito. Concedeu o benefício a toda a escala hierárquica, até o generalato. Dois anos depois, foi convencido de que as promoções na caserna dependiam da análise de cada caso e, portanto, não poderiam ser automáticas. Levou o processo ao plenário para apresentar seu novo entendimento. “No caso, eu modifiquei o meu voto, para grande desagrado, naturalmente, da pessoa que estava patrocinando ( a causa ), que era militar, formado em Direito também, e que veio falar comigo, muito lamurioso”, escreveu. “Eu fiquei muito aborrecido, mas me convenci efetivamente disso, e então não posso, em nome de uma suposta coerência, manter um entendimento que hoje considero o contrário”, completou.
O professor de Direito Michael Mohallem, da Fundação Getulio Vargas do Rio de Janeiro (FGV-Rio), explicou que, juridicamente, mudanças de voto não representam problema, desde que não estejam atreladas ao casuísmo. “No campo do Direito e num tribunal constitucional, é importante tratar com naturalidade o espaço do convencimento. É a razão do colegiado. A lei não é uma ciência exata”, afirmou. No entanto, Mohallem considera importante analisar se as mudanças nos votos ocorrem por convencimento ou decorrem do momento político, conjuntura econômica ou se a decisão tem potencial para atingir alguém específico. “A questão é se essas mudanças representam o livre convencimento do juiz ou se são motivadas casuisticamente. Nesse caso, haveria um desvio por parte do ministro”, observou.

Ainda segundo o professor, mesmo que as mudanças de opinião sejam legítimas, há o risco de que prejudiquem a estabilidade da jurisprudência do tribunal. Uma Corte constitucional que muda a orientação sobre um assunto a toda hora pode confundir juízes de todo o país na análise de processos semelhantes. O caso da segunda instância é um bom exemplo. Antes de 2009, a prática era prender réus depois da condenação por tribunal de segunda instância. Depois, os réus passaram a ter o direito de aguardar mais tempo em liberdade. Em 2016, foram retomadas as prisões antecipadas. Agora, o STF está prestes a derrubar a regra em vigor, como apostam ministros da Corte ouvidos por ÉPOCA. “A estabilidade da jurisprudência é importante. É normal que um tribunal reveja certas posições, mas não é normal que isso ocorra a cada mudança de composição ou a cada mudança de posição daqueles da mesma composição. A jurisprudência se torna muito volátil”, disse Mohallem. “Nos Estados Unidos, revisões de jurisprudência pela Suprema Corte são pouco comuns. E, quando acontecem no decorrer das discussões sobre um processo, raramente se tornam públicas, já que as sessões não são transmitidas”

[por ter tudo a ver com a INSEGURANÇA JURÍDICA apontada por Mohallem, transcrevemos parte de entrevista na qual  ele aponta novo buraco na corroída estrutura da INsegurança JURÍDICA no Brasil.
Vejamos:

"BRP – Parece estranho, mas o STF vai decidir se o País vai aplicar ou não um dispositivo constitucional? 
Michael Mohallem – Sim. O instrumento serve para isso. A ação direta de constitucionalidade é proposta quando há uma dúvida se uma lei específica é constitucional ou não. Nesse caso, há uma norma que está em vigência dizendo que é constitucional prender após segunda instância. Só que, como há muitos casos que questionam isso, essa ação serve para solidificar de uma vez o entendimento. Ela diz: ‘Eu quero que o Supremo declare de uma vez que isso é constitucional e por meio dessa ação ela tem efeito vinculante’. A partir dessa decisão do Supremo, os juízes de outras instâncias estariam condicionados a seguir esse mesmo entendimento, para dizer se o dispositivo do Código do Processo Penal é condizente com a Constituição."
Salvo engano, o entrevistado optou por uma resposta enviesada, estilo política, de forma a não escancarar de vez o buraco, o abismo, da INSEGURANÇA JURÍDICA que impera no Brasil.
 
Só que a própria pergunta conspira contra qualquer resposta política.
Afinal, qual sentido tem uma Corte Constitucional, criada pela própria Constituição que está sob sua guarda, ter poderes para decidir se um dispositivo constitucional deve ser aplicado ou não - a simples procedência da pergunta é a prova incontestável da INSEGURANÇA JURÍDICA reinante no Brasil e convalidada pela Corte Suprema.]
No caso da revisão da execução da pena após condenação em segunda instância, o entendimento da maioria, firmado em 2016, previa que os tribunais superiores avaliariam apenas filigranas jurídicas sobre a constitucionalidade da aplicação da lei. O embasamento da condenação, feito a partir da coleta de provas, seria, portanto, concluído na primeira e na segunda instâncias. Daí a possibilidade de prisão.

Na Suprema Corte dos Estados Unidos, as mudanças de voto são menos comuns. Ao menos, são poucos os casos que chegam ao conhecimento do público, considerando-se que as sessões não são públicas. Primeiro, os ministros ouvem as sustentações orais dos advogados em uma sessão. Depois, em outra ocasião, a portas fechadas, eles discutem o processo. O resultado e o placar só são divulgados depois que os nove ministros chegam a um veredito. É possível, portanto, que um magistrado mude de ideia ao longo das discussões e ninguém fique sabendo.

Nos Estados Unidos, tampouco há um relator do processo, como no Brasil. Mas, ao final do julgamento, um dos ministros que integram a maioria formada é escolhido para redigir o acórdão — ou seja, um resumo do que foi decidido. No livro Supreme conflict , a jornalista Jan Crawford Greenburg conta que o ministro Anthony Kennedy, hoje aposentado, foi escolhido redator para o acórdão de um dos julgamentos mais polêmicos de 1992. Um homem chamado Daniel Weisman pedira que a Suprema Corte proibisse um rabino de fazer uma oração na cerimônia de formatura de uma escola pública. Achava que o poder público não deveria obrigar sua filha a participar de prática religiosa. Weisman argumentou que a oração violava a Primeira Emenda da Constituição dos Estados Unidos, que separa Estado e religião. A defesa da escola, por sua vez, argumentou que a pregação era sobre tolerância e liberdade — portanto, não haveria coerção religiosa. Ponderou também que não era razoável excluir a religião da vida das pessoas.

Afeito às ideias conservadoras, Kennedy discordou do argumento do pai da aluna. Concluiu que o rabino, além de não influenciar os estudantes de forma inapropriada, não tinha obrigado ninguém a participar da oração. O placar ficou em 5 a 4 para a defesa da escola. Kennedy foi escolhido redator do acórdão e, quatro meses depois, com uma pilha de rascunhos acumulados na mesa, chegou à conclusão de que os conservadores estavam errados e que o pai tinha razão. Anunciou aos colegas sua mudança de ideia. Para ele, a oração no evento era inconstitucional. O placar ficou, então, invertido. “Não é incomum para um ministro mudar de ideia depois de apresentar seu voto em um processo, especialmente se ele estava vacilante desde o início. Os ministros, às vezes, pensam de outra forma sobre um caso, depois de ler um voto diferente. Mas é menos comum para um ministro que esteja escrevendo um acórdão fazer isso. E é mais raro ainda quando o ministro é o voto decisivo no julgamento”, escreveu Greenburg.

Época - Coluna Carolina Brígido