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quarta-feira, 9 de março de 2022

Você (não) está transando? - Revista Oeste

Foto: Montagem Revista Oeste/Shutterstock
Foto: Montagem Revista Oeste/Shutterstock

Uma  dessas pesquisas (coordenada pela Universidade de Chicago) entrevistou mais de 9 mil pessoas nos EUA entre 2000 e 2018. Alguns dos resultados:

  • um terço dos homens entre 18 e 24 anos revelou não ter tido nenhuma atividade sexual no ano anterior;
  • a atividade sexual entre mulheres dos 25 aos 34 anos caiu de 12% para 7% nesse período;
  • a proporção de jovens adolescentes que não praticavam qualquer tipo de sexo subiu de 28,8% para 44,2%.

Outra pesquisa, com 7 mil mulheres australianas entre 18 e 39 anos, concluiu que metade delas experimentou algum tipo de angústia quando teve relações “stress, culpa, vergonha ou infelicidade sobre suas vidas sexuais”. E sexo supostamente existe para dar prazer, e não angústia.

Uma terceira pesquisa, realizada no Reino Unido, ouviu 8.500 pessoas e chegou a conclusões pouco animadoras, reveladas no ano passado. Em 1991, os pesquisados disseram que transavam cinco vezes por mês. Em 2001, essa frequência caiu para quatro vezes e, em 2021, caiu para três. Um estudo alemão localizou essa tendência inclusive em casais que moravam juntos. 

E não são casos isolados. Segundo Soazig Clifton, diretora do serviço de pesquisas Natsal do University College London,se você olhar pelo mundo, outros estudos semelhantes mostram também uma queda. Então, está parecendo uma tendência internacional”. Claro que essas pesquisas geralmente não focam nas camadas mais pobres e culturalmente precárias das populações. Mesmo assim, servem como termômetro de tendência.

O que está acontecendo? Dentro de uma perspectiva histórica, estamos vivendo uma era que deveria configurar o auge da nossa atividade sexual. Temos métodos anticoncepcionais, medicamentos e acessórios para tornar o sexo confortável e até pílulas que garantem a ereção masculina. O que mais é necessário?

O site Pornhub teve 42 bilhões de visitas em 2019. São 115 milhões de visitantes por dia

Existem algumas teorias levantadas para tentar explicar essa queda no interesse por sexo. Nenhuma delas é conclusiva, mas a soma indica algumas pistas.

Estamos mais ocupados
Aplicativos, celulares, sistemas de teleconferência, trabalho sem horário, séries que não acabam, grupos de WhatsApp, a guerra no noticiário. O mundo conectado nos dá cada vez menos tempo para as providências básicas de um momento de sexo: relaxar, criar um clima, nos entregar a preliminares, etc. Nada disso impede uma vida sexual intensa e rica para quem está disposto a isso. Mas dificulta bastante. Quantas dezenas de cenas românticas em filmes a gente já viu sendo interrompidas pelo celular?

Pandemia e paranoia

As medidas muitas vezes exageradas para combater a covid fizeram com que mesmo os casais mais íntimos passassem a se olhar com desconfiança. Se a situação estava tão feia que ficou arriscado até respirar ao lado de alguém, qual o incentivo para que, no mínimo, se beijem? Segundo a psiquiatra Carmita Abdo, especialista em sexualidade da USP, o início do lockdown até ajudou a que pessoas praticassem mais sexo por estar trancadas. Mas, conforme a pandemia foi se prolongando, “a prática sexual passou a ser mais esporádica, e as falhas, como falta de desejo, bastante frequentes.” O que, segundo a doutora Abdo, aumentou os casos de violência doméstica, divórcios e separações.

Efeito Instagram

A busca da intimidade de astros e estrelas já custou o preço de um exemplar da Playboy. Um flash de uma pessoa famosa com pouca roupa era um prêmio a ser conquistado. Hoje, esses astros e estrelas se exibem pelo Instagram em busca de curtidas. Aconteceu uma vulgarização da intimidade, de segredos que só eram permitidos para poucos. Ícones tiram fotos de si mesmos, em ambientes artificiais e cheios de ostentação. A imagem que eles projetam joga a nossa vida na vala comum da frustração e da impotência. Descontentes com a vida que levamos, baixamos nosso nível de libido um pouco mais. 
 
Pornô para todos
Só o site Pornhub teve 42 bilhões de visitas em 2019. São 115 milhões de visitantes por dia. Ou 14 milhões por hora. Ou mais de 240 mil por minuto. Ou 4 mil a cada segundo. Como informa o site da empresa, “este é o equivalente às populações de Canadá, Austrália, Polônia e Holanda”. São 209 gigabytes de pornô por segundo
E ficou longe o tempo de degradação e abuso de mulheres, como Linda Lovelace em seu Garganta Profunda (1972). A maioria das produções hoje envolve casais querendo ganhar um dinheiro extra, às vezes farto, com produções caseiras. Deixou de ser também um produto exclusivamente para homens tarados. Bissexuais, trans, gays, mulheres, homens, lésbicas, idosos, todo tipo de gente (menos menores de idade) está estrelando filmes no Pornhub. 
E o usuário tem milhões de possibilidades para encontrar sua fantasia perfeita. A idade média do visitante é 36 anos. A maior faixa de público (36%) está entre os 25 e os 34 anos. O tempo médio de uso no Pornhub é de dez minutos, muito provavelmente o tempo que leva uma pessoa a procurar a autossatisfação. Conclusão: está cada vez mais fácil fazer sexo a sós. E nos fazer refletir sobre as consequências do sexo “presencial”. E essa tendência parece cada vez mais irreversível.

(...)

Leia também “Museu de ideias mortas”

Dagomir Marquezi, colunista - Revista Oeste  - MATÉRIA COMPLETA


quinta-feira, 10 de junho de 2021

Por que eu para falar sobre a morte? Letra de médico

Carmita Abdo

Hoje estou convencida de não haver outra especialidade como a minha, a psiquiatria, que conviva tão próxima e insistentemente com a finitude 

Há cerca de 35 anos, escrevi um texto - Por que eu para comentar sobre a morte? -, publicado na Revista de Psiquiatria do Hospital das Clínicas de São Paulo. Reproduzo-o aqui, quase que na íntegra, pela sua atualidade e pertinência. Faço isso, num gesto de reconhecimento ao trabalho diuturno dos meus colegas psiquiatras . E me solidarizando aos parentes e às vítimas de sequelas mentais (ou quaisquer outras) decorrentes da pandemia pelo Covid-19.

Segue o referido texto.

Quando, numa fria tarde de junho do inicio dos anos 1980, Dr. Mauro Aranha, então Residente responsável pela organização das Reuniões Científicas do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas, me procurou no Ambulatório desse mesmo Instituto para me fazer um convite, eu me encontrava «quase morta» pelo trabalho, especialmente exaustivo daquele dia. Encontramo-nos no meio do corredor, exatamente no momento em que eu terminava de supervisionar um outro Residente, no atendimento a um paciente que tentara o suicídio.

Mauro vinha me convidar para participar como comentadora da palestra do psicodramatista Dr. Sérgio Perazzo, sob o título: «O Médico e a Morte. Morte e Psicoterapia». Essa apresentação ocorreria em 2 meses. Hesitei alguns décimos de segundo, mas não consegui dizer não. O tema, embora eu resistisse breve e fragilmente, me atraía , induzindo-me a abraçar o desafio e a ideia de mergulhar por inteira ainda outra vez na Vida, paradoxal precursora da Morte.

Quase pronta para o mergulho, convite praticamente aceito, Mauro dobrando a esquina do corredor, eu travo. Quase pronta para o mergulho e até já mergulhando, eu travo um diálogo comigo mesma: – “Por que eu? Delírios à parte, por que eu?” E eu me respondo: Ora, porque sim. Porque sei lá, pouco importa. Você aceitou e tem dois meses para pensar no assunto, se preparar ou se arrepender e desertar. ‘’- Voltar atrás? Eu …?Nem morta.”

Tá ai! Vai ver que foi por isso, por esse seu jeito de insistir até o fim, como um fantasma velando os vivos, os médicos Residentes, os pacientes, os acompanhantes! Por isso foi escolhida para falar ao final da reunião de quinta-feira, quando a manhã estiver agonizando e todos mortos de fome pelo adiantado da hora e pela proximidade do almoço  “ – Fome? Como consegue pensar em comida numa hora dessas? Morte e almoço não vão bem juntos.”

Não concordo. Nesses meus trinta e poucos anos de vida, tenho assistido a morte se imiscuir em tudo, sem pedir licença e sem aviso prévio. Inexorável sempre, imprevista muitas vezes, ela se impõe, contundente como a derrota. E a pergunta me volta à cabeça:”- Por que eu?” Talvez pelos mortos que já enterrei , pessoas que foram esperança e agonia em minha vida. Motivos de jubilo. Motivos de perplexidade e luto. Pessoas que me fizeram crescer, tanto na expectativa e na convivência com elas, quanto na ausência que embranqueceu meus cabelos, da noite para o dia, quando elas se afastaram de mim.

A primeira delas foi meu filho, nascido em fevereiro de 1979, após uma angustiante gestação de dúvidas e sobressaltos. Nascimento e morte amalgamados, deixando uma profunda cicatriz na história de uma jovem mãe. Um filho que perdi, aos seus vinte e seis dias de vida, sem nunca o ter tido em meus braços nem o acolhido em nossa casa. Meu menino que morreu no hospital, entre tubos, agulhas e balões de oxigênio, no calor artificial de uma estufa, seu primeiro e único berço.

Já psiquiatra e fazendo meu curso de formação para psicoterapeuta, percebi-me, de repente, protagonista de uma tragédia, «desarrumando o quarto do filho que já morreu» e nunca o habitou.  “-Ah! Talvez por isso Mauro me procurasse naquela tarde.”  “-Por me adivinhar capaz de dar o testemunho da médica, psicoterapeuta e mãe marcada por lutos profundos.”

Lembro-me com exatidão, e penso que nunca me esquecerei, de cada mulher que atendi, após a perda irreparável de seu filho; de cada homem cuja demência de sua esposa o transformara num desconhecido qualquer; de cada família destroçada pela vida vegetativa de um pai, vitimado num grave acidente. Como esquecer os sonhos enterrados, os castelos desmoronados, o palco sem luz de cada deprimido que ao meu consultório chegou? De cada impotente ou anorgásmica que comigo compartilhou sua vergonha e sua dor , num pedido de socorro. Como não lembrar, também e especialmente, dos resgates e das superações, com o que me presentearam? Posso afirmar, e com profundo respeito, ter acompanhado centenas de comoventes e admiráveis processos de reparação e renascimento. Respostas valentes e atrevidas ao desengano, revanche daqueles que não se permitiam mais perder, ainda que tomados por intensa emoção e imensa dor. À deles juntei minhas forças e trocamos a morte pela vida. E ainda hoje seguimos trocando, mesmo que por meio de inesquecíveis lembranças .

Mais uma vez, a pergunta povoa meus pensamentos: Por que eu, Mauro?

Reporto-me às aulas que tenho ministrado para alunos da Faculdade de Medicina e dos Cursos de Formação de Psicoterapeutas. Reporto-me à minha tese de Doutorado, sobre Sexualidade (elaborada nos anos 1980). Lembro-me de Freud, de Eros e de Tânatos, de Chapeuzinho Vermelho e do Lobo Mau, de Romeu e de Julieta, de Jesus e de Madalena (com o perdão da heresia!). Lembro­-me de quantas vezes pensei, falei e escrevi sobre a Morte, quando pretendia apenas falar da Vida, do que a origina e a perpetua.

E pensar que escolhi, num passado já remoto, ser psiquiatra, uma especialidade médica que supostamente me esquivaria de enfrentar a morte. Hoje estou convencida de não haver outra especialidade que conviva tão próxima e insistentemente com a finitude, a qual povoa a mente dos que em delírio se creem mortos, dos demenciados, dos suicidas, dos anoréticos, catatônicos, deprimidos, cancerosos, desenganados, malformados, enlutados.

Hoje percebo só me ter poupado do atendimento clínico ao moribundo e, talvez, do preenchimento dos atestados de óbito.

Imaginando escapar, me lancei de corpo e alma nos passamentos, velórios, enterros e lutos. Em cada lágrima, palavra e gesto incontidos que presenciei e acolhi. Em cada silencio que ouvi e traduzi.

Teria sido isso, penso eu, o que Dr. Mauro esperava que eu dissesse, ao – intencionalmente ou sem perceber – me colocar como a porta-voz das supostas reflexões de uma plateia que, impactada pelas palavras do palestrante Perazzo, revolvia, naquele momento, a terra sobre seus mortos (de corpo e/ou de alma) e os revivia, ainda outra vez…no imortal imaginário."

Letra de Médico - Adriana Dias Lopes - VEJA