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quinta-feira, 10 de junho de 2021

Por que eu para falar sobre a morte? Letra de médico

Carmita Abdo

Hoje estou convencida de não haver outra especialidade como a minha, a psiquiatria, que conviva tão próxima e insistentemente com a finitude 

Há cerca de 35 anos, escrevi um texto - Por que eu para comentar sobre a morte? -, publicado na Revista de Psiquiatria do Hospital das Clínicas de São Paulo. Reproduzo-o aqui, quase que na íntegra, pela sua atualidade e pertinência. Faço isso, num gesto de reconhecimento ao trabalho diuturno dos meus colegas psiquiatras . E me solidarizando aos parentes e às vítimas de sequelas mentais (ou quaisquer outras) decorrentes da pandemia pelo Covid-19.

Segue o referido texto.

Quando, numa fria tarde de junho do inicio dos anos 1980, Dr. Mauro Aranha, então Residente responsável pela organização das Reuniões Científicas do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas, me procurou no Ambulatório desse mesmo Instituto para me fazer um convite, eu me encontrava «quase morta» pelo trabalho, especialmente exaustivo daquele dia. Encontramo-nos no meio do corredor, exatamente no momento em que eu terminava de supervisionar um outro Residente, no atendimento a um paciente que tentara o suicídio.

Mauro vinha me convidar para participar como comentadora da palestra do psicodramatista Dr. Sérgio Perazzo, sob o título: «O Médico e a Morte. Morte e Psicoterapia». Essa apresentação ocorreria em 2 meses. Hesitei alguns décimos de segundo, mas não consegui dizer não. O tema, embora eu resistisse breve e fragilmente, me atraía , induzindo-me a abraçar o desafio e a ideia de mergulhar por inteira ainda outra vez na Vida, paradoxal precursora da Morte.

Quase pronta para o mergulho, convite praticamente aceito, Mauro dobrando a esquina do corredor, eu travo. Quase pronta para o mergulho e até já mergulhando, eu travo um diálogo comigo mesma: – “Por que eu? Delírios à parte, por que eu?” E eu me respondo: Ora, porque sim. Porque sei lá, pouco importa. Você aceitou e tem dois meses para pensar no assunto, se preparar ou se arrepender e desertar. ‘’- Voltar atrás? Eu …?Nem morta.”

Tá ai! Vai ver que foi por isso, por esse seu jeito de insistir até o fim, como um fantasma velando os vivos, os médicos Residentes, os pacientes, os acompanhantes! Por isso foi escolhida para falar ao final da reunião de quinta-feira, quando a manhã estiver agonizando e todos mortos de fome pelo adiantado da hora e pela proximidade do almoço  “ – Fome? Como consegue pensar em comida numa hora dessas? Morte e almoço não vão bem juntos.”

Não concordo. Nesses meus trinta e poucos anos de vida, tenho assistido a morte se imiscuir em tudo, sem pedir licença e sem aviso prévio. Inexorável sempre, imprevista muitas vezes, ela se impõe, contundente como a derrota. E a pergunta me volta à cabeça:”- Por que eu?” Talvez pelos mortos que já enterrei , pessoas que foram esperança e agonia em minha vida. Motivos de jubilo. Motivos de perplexidade e luto. Pessoas que me fizeram crescer, tanto na expectativa e na convivência com elas, quanto na ausência que embranqueceu meus cabelos, da noite para o dia, quando elas se afastaram de mim.

A primeira delas foi meu filho, nascido em fevereiro de 1979, após uma angustiante gestação de dúvidas e sobressaltos. Nascimento e morte amalgamados, deixando uma profunda cicatriz na história de uma jovem mãe. Um filho que perdi, aos seus vinte e seis dias de vida, sem nunca o ter tido em meus braços nem o acolhido em nossa casa. Meu menino que morreu no hospital, entre tubos, agulhas e balões de oxigênio, no calor artificial de uma estufa, seu primeiro e único berço.

Já psiquiatra e fazendo meu curso de formação para psicoterapeuta, percebi-me, de repente, protagonista de uma tragédia, «desarrumando o quarto do filho que já morreu» e nunca o habitou.  “-Ah! Talvez por isso Mauro me procurasse naquela tarde.”  “-Por me adivinhar capaz de dar o testemunho da médica, psicoterapeuta e mãe marcada por lutos profundos.”

Lembro-me com exatidão, e penso que nunca me esquecerei, de cada mulher que atendi, após a perda irreparável de seu filho; de cada homem cuja demência de sua esposa o transformara num desconhecido qualquer; de cada família destroçada pela vida vegetativa de um pai, vitimado num grave acidente. Como esquecer os sonhos enterrados, os castelos desmoronados, o palco sem luz de cada deprimido que ao meu consultório chegou? De cada impotente ou anorgásmica que comigo compartilhou sua vergonha e sua dor , num pedido de socorro. Como não lembrar, também e especialmente, dos resgates e das superações, com o que me presentearam? Posso afirmar, e com profundo respeito, ter acompanhado centenas de comoventes e admiráveis processos de reparação e renascimento. Respostas valentes e atrevidas ao desengano, revanche daqueles que não se permitiam mais perder, ainda que tomados por intensa emoção e imensa dor. À deles juntei minhas forças e trocamos a morte pela vida. E ainda hoje seguimos trocando, mesmo que por meio de inesquecíveis lembranças .

Mais uma vez, a pergunta povoa meus pensamentos: Por que eu, Mauro?

Reporto-me às aulas que tenho ministrado para alunos da Faculdade de Medicina e dos Cursos de Formação de Psicoterapeutas. Reporto-me à minha tese de Doutorado, sobre Sexualidade (elaborada nos anos 1980). Lembro-me de Freud, de Eros e de Tânatos, de Chapeuzinho Vermelho e do Lobo Mau, de Romeu e de Julieta, de Jesus e de Madalena (com o perdão da heresia!). Lembro­-me de quantas vezes pensei, falei e escrevi sobre a Morte, quando pretendia apenas falar da Vida, do que a origina e a perpetua.

E pensar que escolhi, num passado já remoto, ser psiquiatra, uma especialidade médica que supostamente me esquivaria de enfrentar a morte. Hoje estou convencida de não haver outra especialidade que conviva tão próxima e insistentemente com a finitude, a qual povoa a mente dos que em delírio se creem mortos, dos demenciados, dos suicidas, dos anoréticos, catatônicos, deprimidos, cancerosos, desenganados, malformados, enlutados.

Hoje percebo só me ter poupado do atendimento clínico ao moribundo e, talvez, do preenchimento dos atestados de óbito.

Imaginando escapar, me lancei de corpo e alma nos passamentos, velórios, enterros e lutos. Em cada lágrima, palavra e gesto incontidos que presenciei e acolhi. Em cada silencio que ouvi e traduzi.

Teria sido isso, penso eu, o que Dr. Mauro esperava que eu dissesse, ao – intencionalmente ou sem perceber – me colocar como a porta-voz das supostas reflexões de uma plateia que, impactada pelas palavras do palestrante Perazzo, revolvia, naquele momento, a terra sobre seus mortos (de corpo e/ou de alma) e os revivia, ainda outra vez…no imortal imaginário."

Letra de Médico - Adriana Dias Lopes - VEJA

 

terça-feira, 19 de maio de 2020

A pele e o coronavírus - Letra de Médico




Conheça as sete manifestações cutâneas relacionadas a Covid-19

Desde o início da pandemia pelo coronavírus, médicos estão descrevendo diferentes sinais e sintomas, nos mais variados órgãos e sistemas, que podem cursar com a infecção. Tal ato é nobre pois, além de traçar métodos clínicos mais sugestivos para se estabelecer diagnósticos precoces dessa enfermidade, pode, em última instância, tentar estabelecer critérios apurados para se conhecer o prognóstico da doença.

Nesse sentido, algumas manifestações cutâneas do coronavírus já foram relatadas e merecem discussão na coluna desse mês. Até agora, sete possíveis manifestações foram observadas: acroisquemia, eritema pérnio, exantema morbiriforme, exantema purpúrico/petequial, exantema tipo varicela (“catapora”), urticária e SDRIFE.

• Acroisquemia: considerada, talvez, a mais grave das manifestações cutâneas do coronavírus, a acroisquemia foi descrita em casos mais graves da doença, em pacientes internados em unidade de terapia intensiva. Esses pacientes apresentavam cianose de extremidades, bolhas de sangue e necrose, provavelmente, resultantes de fenômenos microembólicos sistêmicos causados pela evolução da doença viral.

• Eritema pérneo: caracterizado por placas violáceas sobre base avermelhada, infiltradas e dolorosas, nas faces laterais dos pés e dorsais dos dedos dos pés. Esse manifestação foi vista principalmente nos pacientes do norte da Europa, sugerindo, inclusive, estar associada a uma manifestação leve do coronavírus.

• Exantema morbiriforme: é uma manifestação cutânea comum de várias doenças virais e alergias medicamentosas, manifestando de mais variadas formas. As mais comuns são caracterizadas por manchas avermelhadas associadas a pápulas (“bolinhas”) avermelhadas, vesículas ou lesões purpúricas.

• Exantema purpúrico/petequial:
manifestação considerada rara, caracteriza-se por exantema que evoluiu com púrpuras e petéquias. O quadro é parecido com o exantema presente na dengue, o que pode levar a erros diagnósticos em áreas onde dengue é considerada endêmica.

• Exantema tipo varicela (“catapora”): caracterizada por pápulas avermelhadas e vesículas distribuídas principalmente no tronco. Foi descrito como surgindo após 3 dias de aparecimento dos sintomas gerais do coronavírus.

• Urticária: podendo aparecer antes ou após a sintomatologia geral do coronavírus, são placas avermelhadas, pruriginosas, que, em alguns casos, confundiu o diagnóstico precoce de infecção por coronavírus.

• SDRIFE: caracterizado por exantema em áreas de dobras, parecido com “Symmetrical Drug-Related Intertriginous and Flexural Exanthema” (daí, a sigla SDRIFE), também conhecido como síndrome do babuíno.
Por enquanto, é ainda cedo fazer o estabelecimento direto dessas manifestações de pele com o coronavírus, seja como meio diagnóstico, seja como meio prognóstico dessa virose. As citações dessas manifestações foram frutos de relatos de casos, o que nos obriga esperar por dados vindos de estudos epidemiológicos mais abrangentes e conclusivos. 

No entanto, esses relatos já alertam para a possibilidade do coronavírus ser, sim, mais do que uma “simples gripezinha”, tratando-se de uma doença de abrangência sistêmica, que atinge vários órgãos e sistemas, e que merece a atenção e o empenho das autoridades políticas e de saúde do mundo todo.

Letra de Médico - Adilson Costa, dermatologista - VEJA