E se...?
‘Foi o derradeiro comando, o mais essencial”, escreveu George Orwell no clássico distópico “1984”, referindo-se à ordem da fictícia Oceania para que seus súditos rejeitassem tudo o que os olhos vissem e os ouvidos escutassem à margem da linha oficial. Donald Trump volta e meia adapta a citação quando aponta para o inimigo que adoraria domesticar: a imprensa independente. “Lembrem-se, o que vocês estão vendo e o que vocês estão lendo não é o que está acontecendo”, avisa sempre. No Brasil de Jair Bolsonaro o que se vê, ouve ou lê é bastante parecido com o que acontece intestinamente no governo manicomial eleito em 2018. Um assombro diário. E é o jornalismo arretado, investigativo, que nos permite ver e escutar. Já a tarefa de pensar fica a cargo de cada um.
Considerando-se a fidelidade já demonstrada pelos milhões de apoiadores do presidente-mito, é provável que uma boa parcela o seguiria de casa e bíblia na mão.
Nessa hipótese, como seria a mudança de comportamento da curva do vírus no Brasil?
O índice de contaminação diminuiria para quanto? E a mortandade? Poderíamos regredir quantas casas no sombrio ranking global?
Dá para calcular o efeito de mais leitos de CTI e respiradores com tempo de se tornarem operacionais. Talvez deixássemos de ser o país-pária da atualidade, e fronteiras se entreabririam para o Brasil quando o mundo retomasse sua rotina. A gritante subnotificação de óbitos e contaminados do país teria mais chances de ser computada e aperfeiçoar as políticas sanitárias?
Já disponível para outras enfermidades como malária mas ainda não liberada para tratar o coronavírus em sua fase inicial, a poção mágica abraçada por Bolsonaro torna-se, agora, política oficial para pacientes do SUS. Os dois ministros da Saúde defenestrados, ambos médicos, se opunham à medida devido a seus possíveis efeitos colaterais. “Votaram em mim para eu decidir e esta questão passa por mim”, decidiu o presidente.
Nos Estados Unidos, onde o número de óbitos se aproxima dos 100 mil, o Instituto de Alergias e Doenças Infecciosas deu início a um teste clínico da droga em 2.000 adultos. Até a conclusão do estudo, nem Donald Trump, outro fervoroso adepto da droga, terá vez. O terceiro promotor ativo da cloroquina é o venezuelano Nicolás Maduro, formando um improvável eixo de líderes errados para tempos de pandemia.
Dorrit Harazim, jornalista - O Globo