Só o devido processo legal pode condenar o bandido. Acredito nos ritos — creio que o mundo é melhor, mais seguro, quando respeitados. Não jogo para a galera
Um leitor
me convida a refletir sobre o conjunto de meus artigos no GLOBO — qual seria a
natureza da coisa? Tento, então, ensaiar uma resposta, objetivamente
impossível, mas que pode encontrar algum caminho no modo como penso haver
tratado a crise decorrente das denúncias contra Michel Temer. Era
preciso separar o conteúdo indecoroso da gravação feita por Joesley Batista da
inexistência de provas que incriminassem o presidente no material. E assim me
afastei da histeria; da sanha ceifadora. Sobretudo, era preciso distinguir a
possibilidade de que Temer fosse culpado e a evidência de que fora vítima de
uma emboscada em que — pelas mãos de agentes públicos — absolutamente tudo se
havia desviado da lei. E assim me afastei da ficção — daquela, fantástica,
segundo a qual seria do PMDB o protagonismo num esquema desenvolvido durante os
anos de governo petista, conforme nos tentaram enganar os narradores
janotistas.
Oriento-me
sob o seguinte norte: não importa a opinião jacobina de procurador nem a
capacidade criativa de juiz para acolher acusação sem fundamento, tampouco o
consenso, na sociedade, de que fulano é bandido; só o devido processo legal
pode condená-lo. Acredito nos ritos — creio que o mundo é melhor, mais seguro,
quando respeitados. Não jogo para a galera. E assim me afasto de ser mais um
legitimador da cultura do justiçamento pulsante entre nós, tão bem expressa na
sentença popular diariamente apregoada nas ruas: “É ladrão. Dane-se a lei.”
Penso
sobre se o brasileiro, algum dia, alcançará considerar corrupto um indivíduo
como Romero Jucá e, ao mesmo tempo, asqueroso o assédio de que foi vítima, na
semana passada, dentro de um avião. Pergunto: haverá ainda quem consiga ter
Jucá na pior conta e se abismar com a truculência em que consistiu a blitz
daquela senhora? Não é questão particular. Substitua o senador por qualquer
homem público. Serve igualmente a Lula, Aécio, Renan etc.
Falo de
equilíbrio; de ponderação; de discernimento. Falo sobre a prática corrente —
mas peço ao leitor que a projete no futuro. Nem precisa ir longe. Vá até 2018,
logo ali, e especule sobre aonde pode chegar essa lavra de honras supliciadas,
essa agricultura a que tantos oportunistas e irresponsáveis se lançam
lucrativamente, ademais num ano eleitoral que já corre — e que se decidirá —
nos tribunais. Que retrato sanguinário se pinta no porvir, não?
Convém
medir o grau de acomodação moral (de esgarçamento da compreensão sobre a trama
dos direitos individuais, inclusive de calhordas) enunciado em leituras segundo
as quais o que se moveu contra Jucá nada mais seria do que livre manifestação
de cidadania, um protesto de indignação saudável, a se comprovar na ausência de
agressão física. O quê? Ninguém precisa cuspir na cara do outro (né, Jean
Wyllys?) para surrar.
É possível — fácil — ser violento à margem de tipificação
penal. E é mesmo assustador que se trate por normal o ato calculado de acionar
uma câmera e disparar verbo contra terceiros — sejam quem forem. Nada disso,
porém, interessa. Este artigo não é sobre casos concretos, mas sobre o espírito
do tempo que os embala. Que tal
um exame das condições gerais em que essa laia de abordagem se torna frequente
e, mais que aceitável, bem-vinda? O estímulo vem de cima. Lembro que este é um
país em que o Supremo Tribunal Federal permitiu que a lei retroagisse contra o
réu; em que a mesma corte autorizou o cumprimento de pena extrajudicial; e em
que se executou — a saber ainda se grande ou imensa a participação de membros
do Ministério Público — um flagrante armado contra o presidente da República.
Há outros
vários exemplos. Mas a ideia — o conceito — de flagrante armado é chave. Esse
composto de desarranjos institucionais é o vírus que infectou o Brasil, país cuja
grave doença, chaga na medula da integridade, tem como sintomas ataques como o
da senhora a Jucá: um — atenção — flagrante moral armado. O exemplo vem de
cima. É o Estado que empodera o cidadão a que faça justiça com as próprias
mãos. Se a
combinação industrial entre denuncismo e vazamento seletivo de conteúdos
sigilosos criminaliza e condena, com chancela oficial, à revelia de qualquer
processo judicial, por que não posso eu e meu celular?
Lembro
que este é um lugar em que já existe licença, festejada, a que se afogue a
Constituição se para pegar aqueles que – temos certeza – são criminosos.
Refiro-me ao deputado Jorge Picciani e quadrilha, ilegalmente presos em
flagrante — aí, sim — de desrespeito à combinação de dois artigos
constitucionais. “É vagabundo. Dane-se a lei.”
Sim, este
é o país do linchamento; de uma gente capaz de perseguir por anos um jogador de
futebol em cujo carro, sob sua direção leviana, pessoas morreram em decorrência
de um acidente. Ou o leitor não se lembra de Edmundo e dos gritos de
“assassino” que o acompanhariam pelo resto da carreira? Ali e em outros tantos
casos, contudo, exprimia-se a massa — a própria covardia acéfala.
Ocorre
que a covardia perdeu o caráter difuso e irracional. Tornou-se valente e
premeditada. E, quando há um covarde animoso e com método, creia: fascismo
haverá. Fascismo há. Fascismo houve – foi fascismo o que se investiu contra
Jucá. E vai piorar. Os princípios ancoradouros da civilização suplicam por que
combatamos a satisfação íntima ante o empastelamento daqueles de que não
gostamos. Em vão. Vai piorar.
Carlos
Andreazza, editor de livros