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terça-feira, 5 de dezembro de 2017

Flagrante moral armado



Só o devido processo legal pode condenar o bandido. Acredito nos ritos — creio que o mundo é melhor, mais seguro, quando respeitados. Não jogo para a galera 

Um leitor me convida a refletir sobre o conjunto de meus artigos no GLOBO — qual seria a natureza da coisa? Tento, então, ensaiar uma resposta, objetivamente impossível, mas que pode encontrar algum caminho no modo como penso haver tratado a crise decorrente das denúncias contra Michel Temer. Era preciso separar o conteúdo indecoroso da gravação feita por Joesley Batista da inexistência de provas que incriminassem o presidente no material. E assim me afastei da histeria; da sanha ceifadora. Sobretudo, era preciso distinguir a possibilidade de que Temer fosse culpado e a evidência de que fora vítima de uma emboscada em que pelas mãos de agentes públicos absolutamente tudo se havia desviado da lei. E assim me afastei da ficção — daquela, fantástica, segundo a qual seria do PMDB o protagonismo num esquema desenvolvido durante os anos de governo petista, conforme nos tentaram enganar os narradores janotistas. 

Oriento-me sob o seguinte norte: não importa a opinião jacobina de procurador nem a capacidade criativa de juiz para acolher acusação sem fundamento, tampouco o consenso, na sociedade, de que fulano é bandido; só o devido processo legal pode condená-lo. Acredito nos ritos — creio que o mundo é melhor, mais seguro, quando respeitados. Não jogo para a galera. E assim me afasto de ser mais um legitimador da cultura do justiçamento pulsante entre nós, tão bem expressa na sentença popular diariamente apregoada nas ruas: “É ladrão. Dane-se a lei.”

Penso sobre se o brasileiro, algum dia, alcançará considerar corrupto um indivíduo como Romero Jucá e, ao mesmo tempo, asqueroso o assédio de que foi vítima, na semana passada, dentro de um avião. Pergunto: haverá ainda quem consiga ter Jucá na pior conta e se abismar com a truculência em que consistiu a blitz daquela senhora? Não é questão particular. Substitua o senador por qualquer homem público. Serve igualmente a Lula, Aécio, Renan etc.

Falo de equilíbrio; de ponderação; de discernimento. Falo sobre a prática corrente — mas peço ao leitor que a projete no futuro. Nem precisa ir longe. Vá até 2018, logo ali, e especule sobre aonde pode chegar essa lavra de honras supliciadas, essa agricultura a que tantos oportunistas e irresponsáveis se lançam lucrativamente, ademais num ano eleitoral que já corre — e que se decidirá — nos tribunais. Que retrato sanguinário se pinta no porvir, não?

Convém medir o grau de acomodação moral (de esgarçamento da compreensão sobre a trama dos direitos individuais, inclusive de calhordas) enunciado em leituras segundo as quais o que se moveu contra Jucá nada mais seria do que livre manifestação de cidadania, um protesto de indignação saudável, a se comprovar na ausência de agressão física. O quê? Ninguém precisa cuspir na cara do outro (né, Jean Wyllys?) para surrar.

É possível — fácil — ser violento à margem de tipificação penal. E é mesmo assustador que se trate por normal o ato calculado de acionar uma câmera e disparar verbo contra terceiros — sejam quem forem. Nada disso, porém, interessa. Este artigo não é sobre casos concretos, mas sobre o espírito do tempo que os embala. Que tal um exame das condições gerais em que essa laia de abordagem se torna frequente e, mais que aceitável, bem-vinda? O estímulo vem de cima. Lembro que este é um país em que o Supremo Tribunal Federal permitiu que a lei retroagisse contra o réu; em que a mesma corte autorizou o cumprimento de pena extrajudicial; e em que se executoua saber ainda se grande ou imensa a participação de membros do Ministério Público um flagrante armado contra o presidente da República.

Há outros vários exemplos. Mas a ideia o conceitode flagrante armado é chave. Esse composto de desarranjos institucionais é o vírus que infectou o Brasil, país cuja grave doença, chaga na medula da integridade, tem como sintomas ataques como o da senhora a Jucá: um — atenção — flagrante moral armado. O exemplo vem de cima. É o Estado que empodera o cidadão a que faça justiça com as próprias mãos. Se a combinação industrial entre denuncismo e vazamento seletivo de conteúdos sigilosos criminaliza e condena, com chancela oficial, à revelia de qualquer processo judicial, por que não posso eu e meu celular?

Lembro que este é um lugar em que já existe licença, festejada, a que se afogue a Constituição se para pegar aqueles que temos certeza – são criminosos. Refiro-me ao deputado Jorge Picciani e quadrilha, ilegalmente presos em flagrante aí, sim — de desrespeito à combinação de dois artigos constitucionais. “É vagabundo. Dane-se a lei.”
Sim, este é o país do linchamento; de uma gente capaz de perseguir por anos um jogador de futebol em cujo carro, sob sua direção leviana, pessoas morreram em decorrência de um acidente. Ou o leitor não se lembra de Edmundo e dos gritos de “assassino” que o acompanhariam pelo resto da carreira? Ali e em outros tantos casos, contudo, exprimia-se a massa — a própria covardia acéfala.

Ocorre que a covardia perdeu o caráter difuso e irracional. Tornou-se valente e premeditada. E, quando há um covarde animoso e com método, creia: fascismo haverá. Fascismo há. Fascismo houve – foi fascismo o que se investiu contra Jucá. E vai piorar. Os princípios ancoradouros da civilização suplicam por que combatamos a satisfação íntima ante o empastelamento daqueles de que não gostamos. Em vão. Vai piorar.

Carlos Andreazza, editor de livros