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domingo, 12 de fevereiro de 2023

Salve o planeta. Elimine a humanidade - Revista Oeste

  Dagomir Marquezi

Algumas correntes acham que o Homo sapiens já teve sua chance

Ilustração: Dotted Yeti/Shutterstock

No seu livro A Ordem das Coisas (1966), o filósofo e psicanalista Michel Foucault lançou a ideia de que a existência dos seres humanos não é eterna nem natural. Na última frase do livro, Foucault diz que “a humanidade será apagada, como um rosto desenhado na areia à beira do mar”.

A impressão que temos é que a humanidade sempre existiu e que continuará existindo infinitamente. O Homo sapiens reina sobre o planeta há 2,6 milhões de anos, segundo um cálculo aproximado da Enciclopédia Britânica. Esse período é chamado de Antropoceno — que significa “a recente era do homem”. Como a Terra tem 4,5 bilhões de anos, nossa existência aqui equivale a um instante fugaz, um flash de tempo. Chegamos, há pouco tempo, e absolutamente nada garante que duraremos para sempre. Pelo contrário, inventamos e disseminamos os instrumentos da nossa própria destruição.

Em 1800, havia 1 bilhão de habitantes na Terra. Hoje, somos 8 bilhões. Segundo estatísticas da ONU, poderemos chegar a 11 bilhões em 2050 e a 14 bilhões em 2100. São os cálculos mais alarmistas. Outros revelam que poderemos ter uma reversão desse crescimento, caindo para 5 bilhões em 2100. No fundo, ninguém tem a mínima ideia do que o futuro nos reserva. Temos o presente. Segundo a Britânica, um quinto da superfície da Terra é usado para a agricultura. Um décimo dessa superfície está transformado em áreas urbanas. E os oceanos estão sendo submetidos a um processo predatório fora de qualquer controle.

Para onde estamos indo? Seguiremos firmes no propósito de alimentar e cuidar de bilhões e bilhões de seres humanos, não importa o que seja necessário para isso?
Viveremos permanentemente ameaçados por armas químicas e biológicas que podem exterminar a vida humana em algumas poucas semanas? Temos o direito ético de acabar com a vida na Terra vida essa que não criamos — com uma chuva de armas nucleares disparadas num momento de crise?
Destruição da raça humana
Ilustração: Pictrider/Shutterstock

“O fim de todos os nossos projetos, valores e significados”

Não são questões simples de responder. Nem existem respostas certas ou erradas para elas. São questões profundas, que varremos para debaixo do tapete enquanto tocamos nossas vidas. Não estamos falando aqui de uma crise artificial e ideologicamente corrompida, como a das “mudanças climáticas”. Falamos de um futuro que ninguém pode prever e que pode trazer a redenção da espécie ou um grau inédito de sofrimento e letalidade na história da humanidade.

Existem grupos que propõem soluções radicais para essas questões. A última edição da revista The Atlantic publicou uma reportagem de Adam Kirsch aprofundando essa questão. “Até o mais radical pensador do século 20 não vai até o fim com a perspectiva da extinção real do Homo sapiens, o que significaria o fim de todos os nossos projetos, valores e significados”, escreve Adam Kirsch. “A humanidade pode estar destinada a desaparecer um dia, mas quase todo o mundo concordaria que esse dia seria adiado o máximo possível, assim como a maioria das pessoas geralmente tenta adiar o inevitável fim de sua própria vida.”


Mas existe um grupo — ainda pequeno de pessoas que não só admite o fim da espécie humana como deseja que isso aconteça. Não formam um movimento, mas uma corrente de pensamento, uma filosofia. Não formam partidos políticas nem ONGs. São formas de pensar e agir sobre o futuro.

Segundo os anti-humanistas, para salvar a complexa teia de vida da Terra, seria necessário eliminar a causadora de toda destruição, toda exploração, todo desequilíbrio — a humanidade

A primeira, segundo a reportagem da Atlantic, é chamada de anti-humanista. Ambientalistas visam a melhorar as condições para que humanos convivam harmoniosamente com outras espécies e o meio ambiente. Segundo os anti-humanistas, para salvar a complexa teia de vida da Terra, seria necessário eliminar a causadora de toda destruição, toda exploração, todo desequilíbrio — a humanidade.

Parte desses radicais se tornou “antinatalista”. Eles propõem simplesmente que os humanos parem de se reproduzir. O maior guru do antinatalismo é o filósofo sul-africano David Benatar, para quem o desaparecimento da humanidade não retiraria do Universo qualquer coisa única ou valiosa. “A preocupação de que os humanos não existirão em algum tempo futuro é ou um sintoma da arrogância humana ou algum sentimentalismo fora de lugar.”

Benatar diz que nós desenvolvemos um senso de autoimportância e que julgamos nossa própria situação no mundo em regime de autointeresse. Nós mesmos, segundo o filósofo, determinamos que somos imprescindíveis. “As coisas serão um dia do jeito que deveriam ser — não haverá gente.” Alguns filmes e documentários já imaginaram cenas de grandes metrópoles tomadas por plantas e animais selvagens, sem nenhum ser humano à vista.

Para reforçar sua ideia, Benatar cita uma pilha de estatísticas, do tipo “tumores malignos matam 7 milhões de pessoas por ano; 310 mil humanos morreram em consequência de conflitos armados em 2000; 107 pessoas morreram por minuto em 2001” — e por aí vai. Segundo ele, se essas vítimas não tivessem nascido, não sofreriam tudo o que esses números mostram. Outro antinatalista, Karim Akerma, inclui todos os outros animais nessa doutrina e propõe uma esterilização total e universal: “Esterilizando animais, nós podemos libertá-los de serem escravos de seus instintos e de trazerem mais e mais animais cativos nesse ciclo de nascer, contrair parasitas, envelhecer, adoecer e morrer; comer e ser comido”.


Upload do pensamento

O antinatalismo não é nenhuma novidade. Alguns dos grupos iniciais do cristianismo seguiam essa linha, como os marcionitas do século 2, para os quais o “mundo visível” seria uma criação de Ievé, o Deus descrito no Velho Testamento. Em oposição a Ievé, as pessoas deveriam abandonar este mundo. E evitar que mais humanos nascessem. Na mesma época, os encratitas também acreditavam na interrupção da procriação humana. Outras seitas em diferentes épocas e lugares concluíram que o nascimento de uma pessoa condenava uma alma a ficar aprisionada num corpo material maligno, que levaria essa alma a se afastar do bem. Muitos acreditam também que o budismo tinha um sentido antinatalista, pois pregava que o sentido da vida é sofrer. Ao não nascer, essa alma evitaria o sofrimento.

A outra corrente, os transumanistas, não quer o fim da humanidade, mas a nossa transformação radical, através de avanços na engenharia genética e da inteligência artificial. Apostam num segundo estágio da civilização, através da colonização de outros corpos celestes. Acreditam numa interação profunda entre os homens e seus computadores e na colonização de outros corpos terrestres. Para os transumanistas, a humanidade não seria extinta, mas transformada num novo conceito de vida, misturando vida biológica com computadores. Nossa consciência se transformaria numa espécie de arquivo mental espiritual, que poderia ser transferida para uma nuvem de consciências sem corpos físicos. (As condições tecnológicas para esse salto não estão tão longe quanto possam parecer.)

Podemos considerar as três concepções (anti-humanismo, antinatalismo e transumanismo) ridículas, absurdas, irreais, ilógicas, insanas e tudo que a gente quiser. Mas seria um erro tentar encaixar essas visões de mundo nas caixinhas mentais “esquerda” e “direita”. Elas tratam de questões existenciais, fundamentais e perenes. E servem — no mínimo — para nos tirar do berço esplêndido das certezas imutáveis.

Leia também “A ditadura das big techs”

Dagomir Marquezi, colunista - Revista Oeste


terça-feira, 3 de agosto de 2021

O beijo da morte - Revista Oeste

 
Dagomir Marquezi

A pandemia provocou em muita gente um estado de letargia e pânico infantil, uma espécie de morte em vida 
 

“Eu sei que determinada rua pela qual eu já passei não tornará a ouvir o som dos meus passos. Cada vez que me despeço de uma pessoa pode ser que ela esteja me vendo pela última vez. A morte, surda, caminha ao meu lado e eu não sei em que esquina ela vai me beijar. Qual será a forma da minha morte? Um acidente de carro? O coração que se recusa a bater no próximo minuto? A anestesia mal aplicada? A vida mal vivida, a ferida mal curada, a dor já envelhecida? O câncer já espalhado e ainda escondido? Ou, até quem sabe, um escorregão idiota num dia de sol?”

Raul Seixas — Canto para minha Morte

Por este planeta já passaram aproximadamente 117 bilhões de seres humanos. Destes, 109 bilhões já morreram. O que significa que tivemos 109 bilhões de experiências únicas de morte. Algumas foram naturais, outras premeditadas ou acidentais. Houve mortes súbitas, lentas, indolores, sofridas. Mas ela sempre aparece.

Aprendemos a desenvolver — especialmente nas culturas ocidentais um medo irracional da morte, a negação atávica de uma experiência à qual estamos todos destinados a passar. “Eu não tenho medo da morte”, disse um dia Woody Allen. “Só não quero estar presente quando acontecer.” Em parte, essa rejeição está ligada ao sofrimento pelo qual passamos com a partida de pessoas queridas. Lidar com a perda não é um sofrimento exclusivamente humano. Muitas outras espécies animais choram seus mortos e praticam algum tipo de cerimônia fúnebre. Para um elefante, é doloroso ver a morte de um membro de sua manada. Mas é um fato natural, como o nascimento.

Os humanos não se conformam e procuram vencer a morte de todas as formas possíveis. A Enciclopédia Britânica cita civilizações antigas como as de egípcios, zoroastristas e hindus, que desenvolveram complexos conceitos para descrever a vida após a falência dos sinais vitais. Para ateus em geral, a morte seria o ponto-final, a última página, um corpo que se desfaz em miasmas e é devorado por vermes. Segundo eles, toda religião é ilusória. Para os que acreditam em vida espiritual, os ateus não teriam entendido que o verdadeiro sentido de nossa passagem pela Terra é justamente a preparação para o que vem depois.

Mas a morte em si permanece para crentes e ateus como a maior de todas as angústias. 
Carregamos a ansiedade existencial de desconhecer as respostas para duas questões fundamentais: 1) quando eu vou morrer? e 2) como eu vou morrer?. 
Tudo o que temos em mente é que ela caminha junto a nós, silenciosa e invisível, por toda a nossa vida. E não sabemos em que esquina ela vai nos beijar. A morte beijou Raul Seixas aos 44 anos, durante uma madrugada de 1989. Foi representada por uma pancreatite fulminante, diabetes e uma longa estrada no alcoolismo desenfreado.

Todos nós continuamos brevemente vivos mesmo depois que um médico decreta nosso fim. Segundo a Britânica, um minieletrocardiograma pode ser registrado vários minutos após a parada cardíaca. Afinal, um coração bate cerca de 2,7 bilhões de vezes durante uma vida. E tenta uma última chance de bombear sangue quando tudo o mais parece ter acabado. Três horas depois do falecimento, nossas pupilas ainda reagem, e músculos se contraem quando tocados.

Sempre houve essa dificuldade de identificar quando um ser humano atingiu o tal ponto sem retorno. Gregos antigos mantinham seus cadáveres à vista três dias antes de ser enterrados. Os romanos esticavam esse prazo para até oito dias. A preocupação cresceu muito durante o século 19, com histórias (algumas reais) de pessoas catalépticas que despertavam de um aparente óbito presas num caixão debaixo da terra. Essas narrativas inspiraram grandes autores de ficção de terror, como Edgar Allan Poe.

A palavra “genocida” foi usada de maneira tão vulgar e leviana que se esvaziou em seu trágico significado

A partir da segunda metade do século 20, a medicina se dedicou a enganar a morte por meio de aparelhos que mantêm o coração e os pulmões funcionando artificialmente, e da alimentação por via intravenosa quando o aparelho digestivo não funciona mais. Os avanços nesse adiamento da morte estão indo tão longe que já não nos espantamos tanto quando alguém chega a mais de 100 anos de idade.

E, no entanto, continuamos morrendo. E toda morte é individual, como toda vida. Esse fato é esquecido quando passamos a pensar a morte em termos coletivos. Como nos 45 milhões de chineses mortos durante o reinado de Mao Tsé-tung, ou o 1,5 milhão de armênios massacrados pelos turcos no tempo da 1ª Guerra, ou ainda os 20 milhões de cadáveres na conta de Josef Stalin.

O exemplo mais simbólico dessa coletivização são os “6 milhões de judeus” mortos durante o regime nazista. É uma tragédia monumental, mas hoje encaramos o desastre desencadeado pelo hitlerismo como um número redondo de sete algarismos. O horror se dissolve no número, por maior que seja.

Caminho oposto é seguido pelo Museu Auschwitz. Por meio de sua conta no Twitter, a instituição individualiza cada uma das aproximadamente 1.100.000 mortes ocorridas nesse campo de concentração nazista, localizado na Polônia. Vemos a foto de cada vítima e um resumo de sua vida, às vezes breve demais.

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Ervin David, húngaro judeu nascido em 18 de julho de 1938. Assassinado numa câmara de gás de Auschwitz em junho de 1944, antes de completar 6 anos.

Pronto. Dos 6 milhões de mortos, seis deixaram de ser um número. São nomes, rostos, histórias, trajetórias individuais. Coletivizar mortos em números arredondados é como matá-los pela segunda vez. O nome de cada uma das 2.983 vítimas do atentado de 2001 ao World Trade Center foi registrado em 152 placas de bronze, hoje expostas no Museu e Memorial do 11 de Setembro, em Nova York.

O Brasil não teve o mesmo respeito pelas vítimas da covid-19. Elas viraram um número corrompido, em que é difícil confiar. “552 mil mortos” virou uma plaquinha de identificação para que um senador pratique sua sórdida demagogia. A palavra “genocida” foi usada de maneira tão vulgar e leviana que se esvaziou em seu trágico significado. 
Por conta de uma agenda política mesquinha, as outras formas de morrer no Brasil foram praticamente esquecidas por mais de um ano.  
(Das dez principais causas de morte, metade delas se refere a doenças 
do aparelho cardiorrespiratório. 
Outras: demência, violência interpessoal, diabetes, acidentes de trânsito, doença renal crônica. Dados de 2016.)

“Covardes morrem muitas vezes antes de sua morte”, escreveu William Shakespeare na sua peça Júlio César. “O valente só morre uma vez. De todas as coisas que já ouvi, a mais estranha é saber que os homens a temem, visto que a morte, um fim necessário, virá quando tiver de vir.” “O medo da morte se segue ao medo da vida”, completa Mark Twain. “Alguém que vive em sua plenitude está pronto a morrer a qualquer momento.”

Leia também “Vida (digital) eterna”