Mein Kampf: a liberdade de expressão e o paradoxo do direito autoral
Em 1925, Adolf Hitler, aos 36, publicava o fatídico "Minha Luta", traduzido do alemão, Mein Kampf. Imbuído de doutrinas indiscutivelmente controversas e que serviram como fundamento para o que se tornou uma das ideologias políticas mais questionáveis de todos os tempos, o livro, em parte autobiográfico e, em parte eivado de afirmações antissemitas e de hierarquia de raças, alastrou-se como um fenômeno na Alemanha vulnerável da primeira metade do século passado, ao ponto de ser entregue como presente aos recém nascidos, aos casais recém formados e militares da época. Mas não foi só.A filosofia impregnada nas páginas aparentemente inofensivas se exteriorizaram pelo continente europeu da maneira mais incisiva e desumana possível, a história é popular, conhecida de todos, dispensa um aclarar mais assoberbante sobre episódios inquietantes.
A discussão em torno do livro é reacendida nesse exato momento, de maneira tão recorrente quanto o foi logo finda a Segunda Guerra, justamente porque, ao que se depreende da atitude das autoridades responsáveis, se presume um grau de capacidade de subversão através das ideias potencialmente coercitivas da obra. Tal qual no Brasil, na Alemanha, o prazo para que o direito autoral sobre um livro expire é de 70 anos após a morte do autor. A partir desse prazo, a obra cai em domínio público e a reprodução indiscriminada do material pode se dar em uma escala e proporção que, nesse caso, preocupa autoridades não só alemãs, mas, de vários países.
O que sucede é que os direitos de Mein Kampf expiraram recentemente, em 31 de dezembro de 2015. Desde a morte do ditador o estado da Bavária detinha os títulos de direito sobre o livro e, sob o pretexto de não propagar pensamentos nazistas, manteve o acesso do material longe do público ao não publicá-lo durante todos esses anos. No fundo, e a bem da verdade, soa um tanto quanto legítima a preocupação do governo bávaro em inviabilizar novas edições de Mein Kampf. Trata-se de uma medida ponderada e compreensível, todavia, nitidamente plasmada de uma implementação circunstancial que já se vê ruir pelo fator do tempo.
Sendo fato que é inerente ao conceito de "domínio público" a percepção de que a reedição do material pode surgir permeada de impressões particulares e estritamente pessoais de quem o faz (eis aí um conflito entre a liberdade de expressão e a ideia de copyright), o temor encontra justificativa quando se sinaliza para o fato de que há uma ameaça possível no que as ideias de mais de setenta anos atrás podem evocar nos dias atuais. Há que se ter cuidado acerca dos conteúdos publicados atualmente, isso sem sombra de dúvidas, afinal, são estes, tempos de tensão e conflitos extremados e amplamente difundidos no cenário mundial. A intolerância e a hostilidade atingem um patamar muito peculiar, que provavelmente quase encontra similaridade com o vivenciado nos tempos idos, na era do Führer tão odiado, o maior vilão de todos os tempos. O receio sobre o fomento de ideias neonazistas a partir da publicação em massa do antigo livro é aceitável, entretanto, a solução para que se evite chegar em conjecturas antissemitas, não parece ser tão facilmente aceitável como a premissa que a inspira.
Ora, raciocine-se: aquele que estiver decididamente inclinado a ser signatário da doutrina do antigo chanceler da mais nova nação do futebol o fará tendo acesso ao livro ou não. O máximo que se conseguiria seria retardar o acesso ao tal material, porque, por intermédio de meios escusos, assim como a maconha não é tolerada por alguns governos e é adquirida e consumida, assim como produtos ilegais transpõem as barreiras alfandegárias e, assim como uma infinidade de transações não lícitas são avençadas todos os dias no mercado negro, não seria empecilho para um amante radical do austríaco do bigode icônico adquirir o livro na Deep Web, por exemplo. O que deve ser evidenciado como real perigo, portanto, é este sacrifício idiossincrático ao qual a democracia parece estar sendo submetida de forma cada vez mais recorrente e trivial, desimpedida e indiscriminadamente.
É verdade e não se discute que os pensamentos extremistas, discursos de ódio e o radicalismo de algumas correntes ideológicas e que até se respaldam religiosamente devem ser coibidas. Mas em detrimento da liberdade da maioria?
Relembre-se tal episódio: Em 7 de janeiro de 2015 o periódico francês Charlie Hebdo foi atacado por um grupo do segmento radical, o Estado Islâmico do Iraque e do Levante, os irmãos Said e Chérif Kouachi fizeram 12 vítimas fatais. O incidente reverberou na mídia e suscitou um rebuliço estridente instantaneamente, todavia, um elemento crucial, simples, foi banalizado, como sempre, pela mídia de larga escala. O fator causa-efeito, tivera sido calcado aos pés por praticamente todos os comentaristas densamente gabaritados que eram convidados nas CNNs e BBCs da vida para expor uma explicação inteligível sobre o acontecido.
O periódico satírico só foi atingido porque, necessariamente, insistiu em denigrir a imagem do profeta mais emblemático que há. E, não que devesse ter sido diferente, mas todos comentavam que a liberdade de expressão devia ser preservada e que o ocorrido se configurava um tremendo absurdo quando a liberdade de expressão é ameaçada e o Estado Democrático de Direito fica comprometido em sua estrutura basilar por causa dos princípios que são sua rocha de esquina, sua pedra angular arrebatadoramente venerável.
Perfeito. Mais formidável impossível. Pois bem. Que se erga, então, com todas as suas forças, este mesmo discurso, de onde quer que possa vir e onde quer que esteja ele repousando para que sirva de base para justificar a autorização da publicação do livro em cadeia, não só nacional, mas, quiçá, global.
Se em pleno século 21, pessoas que se pretendem com uma carga de valores mais robustecida podem se valer do direito de expressão pra afrontar a cultura alheia e toda uma estrutura dogmática milenar sob o pretexto da "crítica jornalista e da provocação filosófica dos quadrinhos", bem, então, Mein Kampf deve ser editado, publicado e comercializado sem maiores receios, de imediato. Se Maomé pode ser trucidado por mentes contemporâneas, talvez se deva conhecer os mistérios obscuros de uma mente de outrora ter trucidado os judeus.
Não obstante, a perspectiva paradoxal que visivelmente jaz sobre a noção de copyright é que a própria ideia de direitos autorais foi concebida com o intuito de facilitar o acesso do público ao conteúdo de um determinado autor, ou seja, a lei assume a função de ligar o autor com o leitor, proporcionando conhecimento e o desenvolvimento do pensamento crítico e autônomo. No entanto, essa mesma lei serve para manipular o acesso da sociedade ao que pode ou não ser lido, como um controle, exatamente uma censura. Aqueles que já se depararam com Orwell facilmente farão a ligação entre a situação atual com a questão levantada por ele em "1984". Ali, o autor apresenta um futuro aterrador de censura extrema, esboça um tipo de ditadura um tanto quanto até caricatural algo que, num primeiro momento, soa até surreal, mas que denota estar tomando forma.
Em "1984", há o que se convencionou denominar de "Polícia do Pensamento" ou "Polícia da Mente", alguma coisa nesse sentido, não vem ao caso agora, o que importa é que a ideia por trás de tal tipo de monitoramento era de, justamente, controlar os pensamentos a ponto de que ninguém pensasse diferente do que fosse interessante para o idolatrado "Grande Irmão". [nos tempos atuais o maldito 'politicamente correto' e os imbecis que o seguem buscam implantar o 'grande irmão'.] Privar os indivíduos de ter acesso aos diferentes meios de informação e dos mais diversificados objetos de reflexão também configura uma espécie de policiamento do pensamento das massas, e, em um Estado de Direito, é abjetamente inadmissível.
Vale reforçar, ainda, que em tempos idos, livros eram queimados em praça pública com o intuito de privar o povo do acesso ao conteúdo literário e potencialmente enriquecedor, porque é óbvio que despertam o senso crítico. O autor de Mein Kampf que o diga. No auge da Segunda Guerra isso já aconteceu e se tratou de uma experiência que provavelmente não se deseje reviver. Cumpre dizer, em todos os casos, que a leitura deve ser incentivada.
Observe-se, por exemplo, que A Bíblia, é o livro mais violento de todos os tempos, de tal forma que, uma vez prensada num rolo compressor qualquer, o que se extrairá será uma densa polpa de sangue fresco. Não é exagero. O próprio deus dos hebreus se declara guerreador e sanguinolento em alguns trechos do livro mais lido do mundo. E nem por isso as pessoas são menos ou mais amáveis, afinal, a capacidade de interpretação é uma prerrogativa subjetiva intrínseca ao leitor, simplesmente isso.
Nesse contexto, o juiz Alberto Salomão Junior, da 33ª Vara Criminal do Rio de Janeiro, em uma decisão aloprada e bitolada determinou a proibição da comercialização, exposição e divulgação da obra e, não fosse o bastante, mandados de busca e apreensão foram expedidos. E o promotor responsável por subscrever a ação justificou seu posicionamento fazendo uma saudação cega e parcial ao artigo 20 da Lei 7.716/89, que determina pena de reclusão de um a três anos para quem “praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional” e de dois a cinco anos se “cometido por intermédio dos meios de comunicação social ou publicação de qualquer natureza”. Por óbvio, o referido dispositivo sequer foi observado em consonância com os valores constitucionais, parece uma justificativa purista da ordem de um brocardo severo como Dura Lex Sede lex ou, de uma rigidez Hitleriana quando buscando a pureza de raças através de experimentos absurdos, até.
E, a seu turno, disse o juiz: "Registre-se que a questão relevante a ser conhecida por este juízo é a proteção dos direitos humanos de pessoas que possam vir a ser vítimas do nazismo, bem como a memória daqueles que já foram vitimados. A obra em questão tem o condão de fomentar a lamentável prática que a história demonstrou ser responsável pela morte de milhões de pessoas inocentes, sobretudo, nos episódios ligados à Segunda Guerra Mundial e seus horrores oriundos do nazismo preconizado por Adolf Hitler”.
Como já mencionado, a preocupação do magistrado é legítima, mas a forma como decidiu destinar a solução para seu incomodo é abusiva. É curioso que ele se preocupe com questões de racismo, de discriminação e de preconceito e não tenha mandado fulminar todas as Bíblias das estantes das mesmas livrarias Saraiva, Centauro e Argumento que comercializam o livro do ditador. Afinal, tanto Hitler quanto Deus pareceram demonstrar alguma relutância em aturar os "efeminados e homossexuais" e contra as pessoas com necessidades especiais também e contra os negros. O apóstolo Paulo, inclusive, pareceu ser permissivo com o escravagismo ao sugerir que os escravos sejam subservientes aos senhores e que as mulheres se submetam aos caprichos de seus companheiros. E então? Como fica toda a questão? Simples: quem quiser ter acesso ao livro vai ter acesso com ou sem determinação de algum juiz. Uma folha em branco e o" Minha Luta "do falecido Adolf tem o mesmo grau de periculosidade, a interpretação coerente ou agressiva está na visão consciente ou não do leitor.
Em suma, a percepção sobre a liberdade de expressão talvez necessite ainda ser melhor compreendida pelo judiciário brasileiro. E a tratativa do paradoxo é bem mais evidente do que se possa imaginar: Hitler apregoava uma superioridade de raça e, no entanto, ele mesmo não era ariano; a lei de direitos autorias parece ser dúbia e, pode ser instrumentalizada de duas maneiras diferentes; o juiz Alberto Junior age numa conduta hitleriana cerceando a liberdade e defende os direitos humanos ao mesmo tempo; o povo em Paris quer paz e guerreiam contra os extremistas; e o deus dos hebreus é amor e também é sangue e violência ao mesmo tempo.
Qual destes, então, é o mais feliz em algum de seus argumentos? Cada um busca o próprio interesse? Há algum falso moralismo velado nas pretensões atuais? É um universo paradoxal este. Mas provavelmente o mais feliz fosse o primeiro de nós, aquele que, segundo o livro que juiz nenhum ainda teve peito para censurar, foi originado do pó.
" Feliz foi Adão que não tinha sogra nem caminhão ".