Discorri, sobretudo, acerca do pensamento equivocado de muitos julgadores, que ao invés de aterem-se à letra da lei, ao que ali está escrito e determinado, tecem elucubrações e ampliam interpretações, na hora de aplica-la, fazendo-o de acordo com seu próprio ponto de vista, de um modo ostensivamente inconstitucional .
Ocorre, nesse momento, aquilo que o grande Antonin Scalia, juiz da Suprema Corte americana, integrando-a de 1986 até a sua morte, em 2016, chamava de comportamento de reis: estes aplicadores do Direito consideram que a lei está a seu serviço (e não ao contrário), pois enxergam-se como verdadeiros ungidos por Deus, tais quais os monarcas absolutistas do passado.
O direito romano, a cultura grega e a tradição judaico-cristã formam o tripé que conduziu a civilização, por milhares de anos, até o tempo atual. Com base nos valores alcançados , pelos ensinamentos adquiridos, criamos meios de convivência em comunidade e de dissolução de conflitos sociais.
Aprendemos que há algo maior que nos norteia e rege, e que a vontade do homem é formatada por regras superiores a este, devendo o mesmo adequar-se, a fim de ser aceito, no meio social. Isso é indiscutível.
No entanto, eis que, de uns tempos para cá, o ativismo judicial, que nada mais é do que abuso de poder, por meio de julgadores, fez-se presente no meio jurídico, e juízes que comportam-se como reis, entendem estar acima das constituições e das leis.
Acontece que o juiz está longe de ser rei. Este exerce uma função pública, para a qual prestou um concurso ou foi escolhido por critérios pré-determinados, como ocorre com desembargadores conduzidos pelo quinto constitucional, e ministros de tribunais superiores. Em quaisquer destes casos, ele deve seguir a legislação, aplicando o que está descrito nas leis e na constituição de seu país, por meio de uma interpretação.
Interpretar não significa inovar, preencher lacunas, fazer analogias “in malan partem” ou, pior ainda, arvorar-se a criar o que não existe. Interpretar é agir dentro dos estritos limites da lei, valendo-se, conforme o próprio Scalia ensinava, do originalismo e da textualidade.
O que seria isso? Originalismo é ater-se ao que a lei originalmente quis dizer. Sem suprir lacunas. Sem inventividades. Da mesma forma que textualidade é interpretar o texto da lei, sem incluir palavras ou expressões que ali não se encontram. Ou seja: VALE O QUE ESTÁ ESCRITO, sem que se tente perquirir a vontade do legislador, a intenção daquela lei (caso não esteja claramente descrita), ou coisa que o valha.
Entretanto, os ungidos por Deus (porque ao sentirem-se com a capacidade de utilizar as leis a seu serviço, é assim que comportam-se certos julgadores), não percebem que, ao agirem dessa forma, retiram da sociedade a tal segurança jurídica, de que falávamos acima: os indivíduos passam a não saber o que esperar das decisões.
Em uma sociedade na qual não se encontra segurança jurídica, automaticamente não se vislumbra a paz social. E onde não há paz, há barbárie. Se decisões, não baseadas em leis anteriores a estas, podem ter impacto na sociedade, então não se sabe o que pode acontecer, em seguida.
Foi assim na Russia de Stalin, quando os juízes passaram a decidir contra a lei e a Constituição, e a favor do Partido Comunista, apesar dos Gulags, da fome do caos. Foi assim na Alemanha de Hitler, quando juízes saudavam o Führer e davam as costas para a população, decidindo de olhos vendados aos horrores ao redor, ao Holocausto, aos campos de concentração, ao abuso de poder.
Tem sido assim, no mundo todo, a despeito de termos tantos exemplos, na História. Mas o homem deu as costas à tradição, lembram-se? E com isso, deu as costas aos ensinamentos que a História traz. Quase nada tem sido feito, para coibir tantas ilegalidades. E o preço a pagar será alto.
Se, no mundo atual, vivenciamos discursos apocalípticos, acerca de vírus, aquecimento global, superpopulação e outras narrativas, ao recepcionarmos os abusos de poder, por certos membros do judiciário, damos a estes salvo conduto para decidirem as nossas vidas, conforme bem entenderem, valendo-se, inclusive, dessas circunstâncias, para agir em desacordo com a lei.
Contudo, algo essencial e inescapável deixou de ser considerado: esses indivíduos não foram eleitos pela população. Não cumprem mandato eletivo, não podem ser destituídos. Possuem cargos vitalícios, e decisões que, em muitos casos, não são passíveis de reexame.
Ao decidirem sobre as vidas das pessoas, instrumentalizando o Direito como lhes convém, estão invadindo competências que não são suas, pois vivemos sob a égide do sistema da tripartição dos Poderes. Judiciário, Legislativo e Executivo possuem funções distintas, e um Poder não pode invadir a seara do outro.
Portanto, toda vez que testemunharmos um julgador inventando o que não está descrito nas leis, sob o argumento de que está preenchendo lacunas, tais lacunas somente se fazem cabíveis, nas hipóteses contidas nas fontes do Direito, e destas não fazem parte as ideias do aplicador das referidas leis. Ele deve ater-se ao que foi criado pelo legislador.
O abismo é logo ali, e a continuidade desse círculo vicioso que vem se formando , em nossa Justiça, dando origem a uma verdadeira JURISTOCRACIA (uma forma de poder baseada no que emana do Judiciário), trará consequências nefastas , de proporções inimagináveis, à sociedade. Que Deus nos ajude.
Tribuna Diária - Érika Figueiredo PE Promotora de Justiça no Rio de Janeiro