1) No fim deste post, logo após um aviso para quem quiser evitar, há uma
imagem forte de cadáver.
É o corpo do comerciante Manoel
Marcelo Avelino, agachado e espremido entre duas geladeiras de sua loja na divisa entre as
favelas de Manguinhos e Jacarezinho, ambas tidas como
pacificadas pela secretaria de segurança pública do Rio de Janeiro. Acima
dele, na fotografia obtida por este blog, aparecem as estantes com caixas
de bala, pacotes de biscoito, embalagens de suco em pó e maços de cigarro. Avelino
morreu na quinta-feira (23), vítima da mal chamada “bala perdida” durante ataque de
traficantes a uma van da UPP de Manguinhos.
Homem armado com fuzil AK (similar à arma portada por Omar Mateen no
massacre na boate gay de Orlando) chuta bola em campo supostamente da
Vila Aliança no Rio: diga, Beltrame, ele comprou no shopping?
Uma das “balas achadas” acertou
na cabeça o sargento Ericson Gonçalves Rosário, de 34 anos, que, mesmo
sendo levado para o Hospital Quinta D’Or, não resistiu. Ele se tornou o 37º policial militar assassinado dentro de uma das
38 regiões da cidade que contam com Unidades de Polícia Pacificadora.
2) VEJA informa:
“Os ataques a policiais em favelas com
UPP tornaram-se rotineiros. Somente este ano, além dos oito PMs que morreram,
74 foram feridos à bala ou por granadas em confrontos com criminosos. Na soma,
esses 84 agentes atingidos em 2016 fazem essa média de baleados atingir a marca de um policial a cada dois dias. As autoridades insistem no discurso de que esses
episódios são uma tentativa do tráfico de tentar desestabilizar o projeto.”
Para se ter uma ideia do poder do
tráfico, no
domingo 19 a Divisão de Homicídios simplesmente
não pôde ir ao Morro da Fazendinha, no também “pacificado” Complexo do Alemão, para fazer perícia no local
onde Roseli dos Santos Jesus também morreu como vítima de “bala perdida” durante um tiroteio.
3) “Se não sair recurso mínimo para resolver o problema
da segurança e da Saúde no Estado, é o caso de chegar a Brasília e entregar a
chave”,
disse ao Estadão o governador interino Francisco
Dornelles, que decretou estado de calamidade pública para obter R$ 2,9 bilhões do governo federal. Os
recursos federais garantem três meses de gastos com segurança – que custa aos cofres estaduais R$ 940
milhões mensais – e ainda ajudam Beltrame e governo a culpar a
crise financeira pelo fracasso da política de segurança que é muito anterior a
ela. Janeiro de 2014, por exemplo, foi um dos piores meses da história da segurança fluminense
e não havia crise alguma para o governo do Rio.
Os
governadores Sérgio Cabral e Luiz Fernando Pezão deram bilhões de reais à pasta de Beltrame, mas a insistência
do secretário em apontar culpados sem jamais assumir suas próprias culpas
virou motivo de chacota em praticamente todos os grupos de whatsapp de
policiais do estado. Uma das
piadas a que este blog teve acesso é assim: “Beltrame diz que fica muito difícil gerir a
segurança após a saída do Reino Unido da UE”.
4) Em entrevista ao El País – jornal
que recebia
verba federal durante o
governo do PT, mas teve seu patrocínio cancelado pelo governo de Michel
Temer junto
com os blogs sujos petistas –, Beltrame
chegou ao cúmulo de culpar a população carioca pelo seu próprio
fracasso: “O cidadão que está lá [nas favelas] vê que o Estado
não está dando bola para ele e a população carioca só quer a favela para arrumar babá, faxineira e
cozinheira. Ela não
está preocupada com a qualidade de vida daquelas pessoas”.
Quem não está dando bola
para o cidadão da favela é o secretário que não o protege contra
os bandidos enquanto recebe para fazer isto um salário pago pela própria
população que ele ataca. O discurso de Beltrame, além de estúpido, é
duplamente preconceituoso: contra babás, faxineiras e cozinheiras, porque
subentende que este tipo de trabalho não melhora a qualidade de vida daquelas
pessoas; e contra a população empregadora,
porque subentende que dar emprego a elas em suas próprias residências
ou empresas é apenas uma forma indiferente de exploração.
Detalhe: como a população
pode “querer a favela”
se os próprios moradores estão morrendo atingidos por “bala perdida”? Beltrame quer que a população suba o morro para dar aula
de português e balé, e
acabe espremida entre duas geladeiras como Avelino? Ao apelar ao
discurso esquerdista mais rasteiro contra as supostas elites, o “sociólogo” disfarçado de secretário só faz estimular o ressentimento dos
pobres e, na
prática, legitimar moralmente o
banditismo entre eles.
5) Nada mais natural que alguém com esta mentalidade
tenha sido tratado com tantas pompas pela imprensa. Defensor
do desarmamento e da liberação das drogas, o secretário que implementou a política de
espalhar bandidos em vez de prendê-los (pergunte ao povo de Nova Iguaçu e São
Gonçalo) recebeu o “Prêmio Faz
Diferença” do jornal O Globo em 2010 e encontrou em Zuenir Ventura seu maior
garoto-propaganda.
Em 2011, preocupado apenas com a possibilidade de
Beltrame virar candidato, o colunista escrevia:
“Uma das razões de
José Mariano Beltrame ser hoje uma das personalidades mais queridas e
respeitadas do Estado do Rio, recebendo aplausos por onde passa, é
evidentemente o unânime sucesso das UPPs, mas é também a sua recusa em se meter
em política ou deixar que a política se metesse em seu trabalho de pacificação
das favelas.”
A
exaltação cega preenchia o artigo inteiro, mas vou poupar meus leitores do
desgosto. Prefiro reproduzir trechos de um artigo do mesmo Zuenir – acredite –
publicado na última quarta-feira 22 (com
base na ação criminosa que
também comentei aqui): “E, se não bastasse, há a crise crônica da
segurança pública, que na madrugada de domingo ganhou um capítulo
cinematográfico, com o resgate no sexto andar do Hospital Souza Aguiar de um
bandido ferido no rosto, com dificuldade de caminhar e pesando mais de cem
quilos: o Fat Family. Foi uma operação de guerra, envolvendo cerca de 20 homens
armados de pistolas, fuzis e granadas, numa demonstração espetacular de como
nossos marginais estão preparados, e as forças da ordem, despreparadas.
Eles planejaram tudo —
sabiam onde o comparsa se encontrava e até que seria preciso um alicate grande
para romper as algemas que prendiam o perigoso paciente à cama. Depois do
desaforado feito, comemoraram num vídeo na internet (‘o mano tá aqui com
nois’), enquanto
as autoridades policiais discutiam, tentando descobrir os responsáveis pelo trágico
vexame, que custou a vida de um inocente que chegava em busca de
socorro.
O PM que custodiava o
preso disse que alertou seus superiores sobre o plano de resgate. Outro alegou
que quis transferi-lo, mas os médicos não deixaram. A Secretaria de Saúde negou
que tivesse havido o pedido. Enfim, um bate-boca que envolveu até o
secretário de Segurança, que se queixou de ‘uma cidade sem limites’, difícil de
ser policiada, ‘uma verdadeira esculhambação urbanística’.
Com a experiência de
ter sido a primeira mulher a chefiar o sistema penitenciário no Rio, a
socióloga Julita Lemgruber desabafou num e-mail para esta coluna na tarde
em que uma senhora e um rapaz inocentes foram mortos em meio a um tiroteio no
Morro do Alemão: ‘Esses irresponsáveis, responsáveis pela segurança pública
do Rio, estão perdidos e, com a proximidade da Olimpíada, estão arrepiando
nos morros de nossa cidade’.
Que passe logo esse
inferno astral, onde só os bandidos
sabem o que fazer. Que venha a tão esperada festa, a dos Jogos Olímpicos.”
O comerciante Manoel Marcelo Avelino, vítima de “bala perdida”
Pois é. O título do artigo remetia ao último trecho que
coloquei em negrito: “Que passe o inferno
astral”. Como se os astros fossem os culpados pelas farsas que Zuenir aplaudiu.