De onde surgiram os 33 milhões de famintos que os aliados de Lula usam como moeda política e a CNBB vai resgatar na Campanha da Fraternidade
“Nós, com meio por cento do PIB, acabamos com a fome entre 2003 e 2010. Acabou. Ninguém mais ouvia falar. Você não via criança no sinal de trânsito. Não tinha mais.” É uma frase como essa, dita pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, na manhã da quarta-feira 15, no coração da Avenida Faria Lima, em São Paulo, que separa o verdadeiro drama da fome de quem faz política com o prato vazio no Brasil.
A primeira resposta possível está numa pesquisa encomendada no ano passado ao Instituto Vox Populi e à Rede Penssan (Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional). Chama-se “Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 (Vigisan)”. A Penssan é formada por profissionais de esquerda ligados a instituições públicas de ensino e pesquisa e foi criada com apoio financeiro de entidades nacionais e estrangeiras. Entre ela, a Fundação Friedrich Ebert (Alemanha), Fundação Ford (Estados Unidos) e Oxfam e ActionAid (Inglaterra). Em outubro de 2021, Lula e Martin Schulz, presidente da Friedrich Ebert, encontraram-se em Berlim. Em agosto de 2018, o empresário já havia visitado Lula na prisão em Curitiba.
Publicado em 2022, o Vigisan foi usado como base para que a CNBB afirmasse em seus relatórios que “o Brasil é considerado o celeiro do mundo, mas carrega uma grande contradição”. Qual contradição? Nessa resposta começa o problema: “A fome é real e atinge hoje cerca de 33 milhões de brasileiros”. De onde surgiu esse número?
Para afirmar que o Brasil tem 33 milhões de famintos, a Penssan comparou dois inquéritos encomendados a ela mesma. O primeiro levantamento foi realizado em dezembro de 2020, no primeiro ano da pandemia, em 2.180 domicílios localizados nas cinco regiões do país. O resultado dizia que 9% da população — 19 milhões de brasileiros — estava em situação de vulnerabilidade alimentar. Ou seja, alarmante, muita gente.
Margem de erro
Assim como a fala de Haddad sobre os meninos no semáforo, os 33 milhões de famintos geraram muito ruído em ano eleitoral. De novo: por que a Igreja Católica embarcou? O vereador Rodinei Candeia, da cidade gaúcha de Passo Fundo, afirma que, na romaria de São Miguel, a mais tradicional do interior do Rio Grande do Sul, um bispo e seis sacerdotes citaram a pesquisa para atacar o então presidente Jair Bolsonaro, em plena campanha eleitoral.
“Logo na apresentação, há uma declaração de apoio ao governo do PT, fixando a data que as políticas públicas eram válidas, até 2016, e a partir daí entra num rumo de insegurança”, afirmou. “Foi um ato político, muito bem pensado e organizado, para atacar o governo federal e fortalecer o discurso de Lula e da esquerda”
A pesquisa, realizada em plena pandemia de covid-19, era baseada em oito perguntas. O corte temporal é explícito. Todas as questões dizem respeito exclusivamente ao sentimento de cada entrevistado nos últimos três meses:
— Nos últimos três meses, os moradores deste domicílio tiveram a preocupação de que os alimentos acabassem antes de poder comprar ou receber mais comida?
— Nos últimos três meses, os alimentos acabaram antes que os moradores tivessem dinheiro para comprar mais comida?
— Nos últimos três meses, os moradores ficaram sem dinheiro para ter uma alimentação saudável e variada?
— Nos últimos três meses, os moradores deste domicílio comeram apenas alguns poucos tipos de alimentos que ainda tinham porque o dinheiro acabou?
— Nos últimos três meses, algum morador deixou de fazer alguma refeição porque não havia dinheiro para comprar comida?
— Nos últimos três meses, algum morador comeu menos do que achou que devia porque não havia dinheiro para comprar comida?
— Nos últimos três meses, alguma vez sentiu fome, mas não comeu porque não tinha dinheiro para comprar comida?
— Nos últimos três meses, algum morador fez apenas uma refeição ao dia ou ficou um dia inteiro sem comer porque não havia dinheiro para comprar comida?
A representatividade nacional da amostragem de domicílios e municípios deixa muitas dúvidas, dada a falta de informações e de dados no documento publicado. A pedido de Oeste, o cientista de dados Leonardo Dias analisou a amostragem. De acordo com o especialista, houve uma sucessão de erros.
“Em primeiro lugar, foi usada a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 2015, sendo que já está disponível a PNAD 2021, que tem uma proporção de amostra de salário bem diferente”, afirmou Dias. “Na edição mais recente, 38% da população ganhava até dois salários mínimos; 40%, de dois a cinco; e 22%, acima de cinco salários”, diz.
“A Vigisan trabalhou com 6% acima de cinco salários, o que é totalmente fora da realidade. Ou seja, focou a amostra e os pesquisados numa população muito mais pobre do que a média brasileira em 2021”
Prato meio cheio
Os dados indicam a possibilidade de uma amostragem superestimada nas Regiões Norte e Nordeste, onde a situação da insegurança alimentar é mais grave, e subestimada nas Regiões Sul e Sudeste, onde o problema é menor. “Não houve um recorte estatístico adequado para chegar a esse resultado”, afirma Dias. “De certa forma, o que aconteceu é muito similar ao que foi feito por algumas pesquisas eleitorais, embora ainda pior”, diz. “É de esperar esse tipo de pergunta, ainda mais sendo uma pesquisa com um forte viés ideológico.”
Jucélia do Amor Divino Andrade mora na favela com os dois filhos há 12 anos. Desempregada e tratando de um câncer, ela recebeu neste mês R$ 400 do Auxílio Brasil. Até o mês passado, o valor era de R$ 600. Jucélia usa o dinheiro para pagar as contas de água, luz e gás. Os alimentos vêm de doações, uma cesta básica da igreja e outra da prefeitura.
“Nunca fiquei um dia sem refeição”, diz. “Alguém sempre ajuda, e eu corro atrás. Troco a carne pelo ovo, uma salsicha, uma amiga compra umas misturas para mim, e assim vou levando, mas, graças a Deus, fome nunca passei e não conheço ninguém que esteja nessa situação.”
Lourdes é um exemplo de que o sentido da vida é continuar. Natural de Nova Londrina, no Paraná, ela perdeu os pais aos 4 anos e foi doada. Passou apuros até os 19 anos, fugiu e foi morar na rua. Engravidou e foi abandonada pelo pai da criança. Quando encontrou a chance de trabalhar, agarrou com toda força.
Ao passar pelo Hospital das Damas, em Osasco, nos anos 1990, viu uma placa anunciando uma vaga para faxineira e entrou. A vaga já estava preenchida. Havia outra, para secretária de enfermagem. O médico que a entrevistou pediu que ela datilografasse uma carta. Embora não soubesse ler nem escrever, Lourdes topou o desafio, até que começou a chorar. Comovido, o médico lhe deu um emprego. “Me ensinaram a escrever, a ler, alugaram uma casa para mim, acolheram meu filho. Passei a ter um pouco de conhecimento e descobri que a vida não era só tristeza. Você precisa dar o primeiro passo”, diz. “Ali, eu me transformei na pessoa corajosa que sou hoje: a Dona Lourdes do Conjunto Vitória.”
Indústria da fomeNo começo do ano, durante o Fórum Econômico Mundial, em Davos, a ministra Marina Silva (Meio Ambiente) usou um número ainda mais esdrúxulo, também extraído do relatório da Penssan: disse que 120 milhões de pessoas — ou seja, mais da metade da população — passam fome no Brasil. É algo como a população do Japão.
O material da CNBB sobre a Campanha da Fraternidade é explícito: a culpa pela fome no país é da grande propriedade rural. “Uma das mais importantes causas da fome no Brasil faz referência à concentração de terras, ocasionando uma distribuição excludente e causadora de desigualdades socioeconômicas de modo que é fundamental uma justa redistribuição da terra”, afirma.
Segundo Bruno Lucchi, diretor técnico da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), rebate o argumento ao lembrar que, graças à força da agropecuária nacional, o país conseguiu passar pela pandemia e enfrentar as consequências da invasão da Ucrânia pela Rússia sem que faltasse nenhum tipo de alimento na mesa do brasileiro. “O setor mostrou a importância que tem no país não só do ponto de vista econômico, de gerar riqueza por meio de valores de exportação e a geração de empregos, mas principalmente em garantir o abastecimento da população brasileira.”
No ano passado, a CNA entregou um documento aos candidatos à Presidência da República e ao Congresso, com um capítulo exclusivo sobre segurança alimentar. “Não podemos comemorar que há mais gente entrando nas bolsas da vida, porque aí estamos dando um atestado de que a política econômica do país não está sendo satisfatória. Ela tem que receber o auxílio, mas também tem que ter uma reinserção no mercado de trabalho e conseguir se sustentar de forma independente.”
É aí que a conta não fecha. Em abril de 2014, durante uma entrevista coletiva para blogueiros progressistas, o vencedor das eleições, agora presidente Lula, confessou que, quando era oposição, costumava citar números aleatórios que não condiziam com a realidade. “Era bonito a gente viajar o mundo e falar que no Brasil tem 30 milhões de crianças de rua… No Brasil, a gente nem sabia”, afirma. “Não esqueço nunca: estava debatendo eu, o Roberto Marinho e o Jaime Lerner, em Paris. Não sei de que entidade era, mas eu estava dizendo que no Brasil tem 25 milhões de crianças de rua. Quando eu terminei de falar, o Jaime Lerner falou para mim: ‘Oh, Lula, não pode ter 25 milhões de crianças de rua, porque senão a gente não conseguiria andar na rua, Lula, é muita gente’.”