Governo italiano se tornou a primeira democracia a mimetizar a ditadura chinesa
[o que prova o entendimento de que a DEMOCRACIA não é - , quando exagerada, o que ocorre com frequência - o melhor sistema de governo. Churchill errou feio.]
No início, a China ocultou as informações sobre a epidemia e reprimiu os
médicos que tentavam dar o alerta. Depois, isolou por meios militares
40 milhões de habitantes de Hubei. Agora, a Itália imita a China – e os
dois governos, o ditatorial e o democrático, ganham aplausos da
Organização Mundial de Saúde (OMS). A lei marcial será, logo, o “novo
normal”?
Semanas atrás, Matteo Salvini, o líder da Liga, convocou o vírus para
sua campanha anti-imigração. O fraco governo italiano de Giuseppe Conte
respondeu ao clamor da extrema-direita ignorando o avanço da doença, que
se espalhava silenciosamente. Consequência do catastrófico equívoco
original: a Itália tornou-se a primeira democracia a mimetizar a
ditadura chinesa, ameaçando encarcerar cidadãos que se moverem para
outras cidades.
A trajetória repetiu-se no Irã. O regime camuflou a ampla difusão das
infecções até girar 180 graus, advertindo que usará “a força” para
conter deslocamentos no Ano Novo persa.
Trump inverteu o percurso, girando no sentido anti-horário. No começo,
capturando a covid-19 para legitimar suas políticas xenófobas, fechou as
fronteiras a qualquer viajante proveniente da China. Na sequência,
diante da turbulência financeira que complica sua reeleição, escreveu no
muro da Casa Branca que o vírus é “uma gripe comum”. Bolsonaro repetiu a
mensagem embusteira do mestre, sem se dar conta de que ela seria
revertida outra vez, dando lugar à perversa proibição de viagens entre
Europa e EUA para barrar o “vírus estrangeiro”.
Nosso Ministério da Saúde (MS), uma das ilhas de competência no oceano
da estupidez federal, não cede aos cantos concatenados da negligência e
da paranoia. Como o ministério alemão, orienta-se pela máxima de que o
pânico é ainda mais letal que o vírus. A estratégia de medidas graduais
—da educação sanitária à redução de interações sociais em áreas
críticas, e daí ao eventual auto-isolamento em clusters de infecção—
implica uma aposta esclarecida na responsabilidade dos cidadãos.
A persuasão é a escolha democrática, que funciona; a polícia, a opção
autoritária, que fracassa. Na China, não houve a alardeada contenção
geográfica, pois milhões deixaram Hubei na hora do surto pioneiro, para
as férias de Ano Novo. [ocasião em que não havia avaliação precisa da intensidade do novo coronavírus.
Para provar que o uso de medidas enérgicas é necessário, a China logo adotou medidas de força - migração não pode retroagir por força de lei, o importante é que a movimentação cesse - e conseguiu hoje ter menos casos de coronavírus do que o Brasil.
Proporcionalmente,em termos de população, a Itália tem mais mortos que a China.]
Mesmo assim, as taxas de letalidade nas demais
províncias, onde o governo recomendou auto-isolamento, foram muito
menores que as de Wuhan, submetida aos comandos totalitários. [uma 'recomendação' do governo chinês tem mais força do que um decreto do governo da Itália.]A lei
marcial mata, disseminando o pavor que empurra multidões gripadas aos
hospitais, implode os sistemas de saúde e vitima médicos e pacientes.
Israel determinou quarentena compulsória a todos que, sem sintomas,
entrarem no país. Pateticamente, o governo de Netanyahu insinua que a
população do exterior é suspeita de contágio – mas a do interior não. A
Alemanha, pelo contrário, promete não fechar fronteiras. Nosso MS também
orienta-se pela contenção focalizada, evitando reações indiscriminadas.
A Itália e os EUA – felizmente, nesse caso – não são aqui.
O diretor-geral da OMS evitou criticar o regime chinês pelo criminoso
ocultamento mas elogiou a “coragem” do isolamento militar de Hubei. Sua
bússola é a política, não a epidemiologia: a OMS almeja tornar-se,
finalmente, parceira da China. A coerência no erro o conduz a festejar a
lei marcial italiana, sugerindo que o mundo siga o exemplo de um
governo sem rumo. A depressão econômica provocada pelo pânico produzirá
incontáveis vítimas entre os pobres, frutos do colapso de renda e de
moléstias não tratadas. Essas vidas perdidas não chegarão às tábuas
estatísticas.
A pandemia do Covid não é fake news. A notícia falsa é que os polos do
debate situam-se entre a complacência e a lei marcial: de fato, a
segunda nasce no solo arado pela primeira. Conte disse que a Itália
atravessa sua “hora mais sombria”. É verdade – e por culpa dele.
Demétrio Magnoli, jornalista - Folha de S. Paulo - UOL