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sexta-feira, 4 de janeiro de 2019

Os valores da farda que volta ao poder

Os oficiais do Exército brasileiro creditam à televisão, aos bancos, ao Congresso Nacional e às multinacionais, nesta ordem, o maior grau de influência política no país. Indagados que instituições deveriam exercê-la, os oficiais se incluem. Colocam as Forças Armadas em quarto lugar entre as aquelas que deveriam ter mais peso político, depois do Congresso, da academia e do Judiciário.
Confrontados com a afirmação do ex-ministro da Guerra do Estado Novo e ex-candidato à Presidência da República, general Pedro Aurélio de Góis Monteiro, de que a política deveria ser mantida fora dos quartéis, a maioria dos oficiais do Exército manifestou discordância. A maior aderência à afirmação de que "cabe ao Exército agir, mesmo que politicamente, quando a pátria estiver em perigo" se dá entre jovens tenentes (63,5%). A adesão à tese agrega menos da metade (48,7%) dos coronéis e generais.
Os dados estão em "A Construção da Identidade do Oficial do Exército Brasileiro", publicado no ano passado pela editora da PUC-RJ. O autor, o major Denis de Miranda, é professor da Academia Militar das Agulhas Negras, escola de formação de oficiais e única porta para o generalato na Força. Por lá passaram o presidente Jair Bolsonaro (turma de 1977) e todos os generais do primeiro escalão, o vice Hamilton Mourão (1975), o ministro do Gabinete de Segurança Institucional, Heleno Ribeiro (1969), o titular da Secretaria de Governo, Carlos Alberto dos Santos Cruz (1974) e o da Defesa, Fernando de Azevedo e Silva (1976).
O livro é resultado do mestrado em sociologia das instituições militares, da PUC-Rio, incentivado por convênio entre os Ministérios da Defesa e da Educação. Para escrevê-lo, Miranda enviou 2.015 formulários para oficiais formados na Aman. Recebeu de volta 643, o que deu à pesquisa uma margem de confiança de 98%. Entre aqueles que responderam, estão 90 generais e coronéis, 249 tenentes-coronéis e majores, 216 capitães e 88 tenentes. No prelo, na mesma editora, está novo levantamento, ainda mais amplo, encabeçado pelo coordenador do núcleo de sociologia das instituições militares, Eduardo de Vasconcellos Raposo. Os primeiros tabulamentos sugerem uma convergência entre os valores militares e aqueles que se fizeram vitoriosos no eleitorado nacional.

A pesquisa de Miranda mostra que a geração de oficiais pós-redemocratização quis se notabilizar pelas operações militares propriamente ditas, mas foi tragada por atividades como o combate à seca e as operações de garantia da lei e da ordem. Mais da metade dos entrevistados reconhece que as ações subsidiárias lhes trazem mais reconhecimento da sociedade. Esse perfil explica por que generais do Alto Comando do Exército têm demonstrado preocupação com a politização dos quartéis. A judicialização da política, como se viu, levou à politização do Judiciário. Não parecem infundados os temores de que a militarização da política leve à politização dos militares. A corporação que se vê mais reconhecida em atividades civis e advoga o dever de agir politicamente quando a 'pátria' estiver em perigo revela sua maior insatisfação com os seus rendimentos. Este batalhão de insatisfeitos terá uma proeminência política inédita nos últimos 30 anos num governo supostamente comprometido com o ajuste fiscal.
A tabela de soldos das Forças Armadas é parte da explicação para o primeiro tiro do general Mourão no anunciado conflito com o Judiciário - "Eles não conhecem o Brasil" (Valor, 28/12/2018). O soldo de um tenente (R$ 7,5 mil) equivale a um terço do salário de entrada de carreiras do Judiciário e do Executivo. A insatisfação salarial mitiga o espírito de corpo dos oficiais. Entre tenentes, grupo que tem menos de dez anos na carreira, mais da metade mudaria de carreira se pudesse preservar a estabilidade. No grupo de coronéis e generais, que já têm mais de 30 anos de Exército e estão às portas da aposentadoria, a intenção de virar a vida pelo avesso atinge apenas um em cada dez.
"Se não fosse militar, qual outra carreira seguiria?" A resposta demonstra o desacerto entre o espírito das Forças Armadas e o coração liberal do ministro Paulo Guedes. Ao ingressar na carreira, o oficial tem, a seu dispor, todo o plano de carreira das décadas seguintes, com as promoções e aperfeiçoamentos que precisará fazer para atingi-las. É essa mentalidade, e não o apetite da livre-iniciativa, que prevalece. Sem a farda, mais da metade rumaria para fazer um concurso público. Entre os mais jovens essa opção abocanha 72,7% de adesão.
Esse espírito de corpo se dilui no momento em que o Exército é mais endógeno do que nunca. A pesquisa de Miranda mostra que 45% dos oficiais são filhos de militares. Na década de 1960 a fatia de cadetes da Aman cujos pais estavam na carreira pouco ultrapassava um terço. Um outro estudioso das Forças Armadas e professor da Universidade Federal de São Carlos, Piero Leirner, atribui a essa endogenia o caldo de receptividade da base das Forças Armadas à candidatura de Jair Bolsonaro. A primeira vez em que se deu conta disso foi em 2012, quando ministrou curso na Fundação Getúlio Vargas, no Rio, para uma turma majoritariamente de militares. Um major reclamou da Comissão da Verdade. Mais tarde, em viagem de pesquisa a São Gabriel da Cachoeira (AM), região que vivia sob uma onipresente liderança do general Heleno Ribeiro, o clima era o mesmo.
O relatório da Comissão colocaria sob o mesmo carimbo os brigadeiros Eduardo Gomes, patrono da Aeronáutica, e João Paulo Burnier, cuja ficha corrida vai da tentativa de golpe contra Juscelino Kubitschek à trama que planejava explodir o gasômetro do Rio em 1968 para incriminar os dissidentes da ditadura. O relatório também teria abespinhado a geração da caserna que subiu a rampa com Bolsonaro por ter colocado no mesmo balaio Cyro e Leo Etchengoyen, respectivamente tio e pai do ex-ministro do Gabinete de Segurança Institucional do governo Michel Temer, Sérgio Etchengoyen. O primeiro foi apontado pelo coronel Paulo Malhães como um dos responsáveis pelo centro de tortura de Petrópolis, que ficaria conhecido como Casa da Morte, mas o irmão foi chefe do Estado-Maior sem registro de envolvimento com tortura.
Ao relatório some-se a reação da ex-presidente Dilma Rousseff ao manifesto do Clube Militar contra o documento. A determinação para que a entidade, de caráter privado, se retratasse, foi seguida por outro manifesto, ainda mais duro. Foi depois desses fatos que Bolsonaro compareceu, pela primeira vez como convidado, à uma cerimônia de formatura da Aman, em 2014. Dava início ali a uma campanha marcada pela presença em cerimônias militares de toda ordem, às quais não compareceria sem a anuência dos comandantes.
O capitão, que ao longo de seus seis mandatos anteriores como deputado federal não ultrapassara as plateias de mulheres e viúvas de militares, cativaria, ao longo do sétimo, as bases das Forças Armadas e seu comando. Na pesquisa do major Miranda, o tema aparece na caixinha 'revanchismo político' como um dos maiores problemas das Forças Armadas, ainda que atrás das limitações materiais dos 'soldos baixos' e 'orçamento inadequado'. Serviu de amálgama a uma corporação, que desgastada pela ditadura, se construiu em torno de valores que buscavam diferenciá-la das instituições civis.
Se o revanchismo, a corrupção da esquerda à direita e a crise pavimentaram o apoio militar, não bastarão como norte para o governo. Na bússola do presidente não faltam ímãs que o empurram em direções opostas, a começar pela abertura ao investimento externo e à aliança incondicional com Donald Trump.  Ao longo das três décadas em que os militares estiveram longe do poder, o anticomunismo perdeu lugar para a defesa da soberania contra a internacionalização das organizações não governamentais. O discurso que embala a revisão da reserva Raposa Serra do Sol vem daí. Leirner identifica na ascensão da Batalha dos Guararapes, do século XVII, em que as três raças se uniram para derrotar os batavos, a construção simbólica de um exército em busca de inimigos externos.
Parece um discurso desbotado, particularmente na era de um militar bandeirante, como Bolsonaro, mas ainda encontra ressonância. A presença das multinacionais identificada na pesquisa de Miranda como um dos interesses que exercem influência demasiada no país, é uma evidência clara das pressões para que o governo Bolsonaro se encaixe nos moldes do ultradireitismo nacionalista que tem em Trump e em Viktor Orbán, o primeiro-ministro da Hungria que prestigiou sua posse, como os principais representantes.
O nacionalismo, no entanto, está longe de unificar os militares do governo, a começar por Hamilton Mourão, de quem se registram, ao contrário dos demais generais do governo, posições mais alinhadas com o pró-americanismo pregado pelo novo Itamaraty do chanceler Ernesto Araújo. Um posto avançado desta batalha já se estabeleceu na Petrobras. O novo presidente, Roberto Castello Branco, foi ungido por Paulo Guedes para comandá-la porque comunga de suas convicções liberais.
Um posto avançado desta batalha já se estabeleceu na Petrobras. O novo presidente, Roberto Castello Branco, foi ungido por Paulo Guedes para comandá-la porque comunga de suas convicções liberais. O ministro da Economia já deixou claro que pretende se valer da cessão onerosa para recompor o caixa do governo, ainda que sua regulamentação esteja pendurada no Congresso. Duas semanas antes da posse, no entanto, o almirante Bento Leite de Albuquerque Junior, nomeado ministro de Minas e Energia, pediu à empresa que providenciasse acomodações para que lá se instalasse com nove assessores. A presença de um cozinheiro na comitiva é um sinal mais do que eloquente da batalha que está por vi. 

Maria Cristina Fernandes - Eu & Fim de Semana / Valor Econômico