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quarta-feira, 27 de dezembro de 2017

O eterno retorno

Para o PT, o voto é o sucedâneo da guilhotina e da metralhadora das revoluções de antanho

Sabe aquele truque do punguista que bate a carteira do transeunte incauto e, antes que ele reaja, sai correndo e gritando “pega ladrão” pela rua acima? Pois é esse exatamente o golpe com que o Partido dos Trabalhadores (PT) enfrenta a pendenga judicial protagonizada pelo seu primeiro, único e eterno candidato à Presidência da República, Luiz Inácio Lula da Silva, aiatolula para seus devotos, Lulinha paz e amor para os que por ele se deixam enganar. Primeiro, eles gritam “golpe!”, como gritaram quando Dilma Tatibitate Rousseff foi derrubada pelas próprias peraltices, anunciando que disputar voto sem ele na cédula não é eleição, é perseguição. Depois saem correndo atrás do prejuízo... dos outros.

A narrativa desse golpe, que eles tratam como se fosse um contragolpe, é a de que seu plano A a Z de poder tem sido acusado, denunciado e condenado e está agora à espera de uma provável, embora ainda eventual, confirmação da condenação em segunda instância. No caso, a Polícia Federal atuaria como se fosse um bate-pau de coronéis da política, que não querem ver o chefão de volta ao poder para desgraçar o Brasil de vez, depois do desastre que produziu a distribuição igualitária do desemprego dos trabalhadores e da quebradeira dos empresários, esta nossa isonomia cruel. O Ministério Público Federal seria um valhacouto de pistoleiros dos donos do poder. E os juízes que condenam, meros paus-mandados de imperialistas e entreguistas. Quem vai com a farinha da lógica volta com o pirão da mistificação: é tudo perseguição.

Talvez seja o caso, então, de lembrar que nem isso é original. Aqui mais uma vez o PT pavloviano que baba quando o padim fala recorre à filosofia pré-socrática do velho Heráclito de Éfeso proclamando o eterno retorno. Não queriam refundar o PT depois do assalto geral aos cofres da República? Pois muito bem, lá vão voltando os petistas às suas origens nos estertores da ditadura. Naquele tempo, os grupos fundidos hesitavam entre a revolução armada e a urna. Optaram pela paz e prosperaram. Os guerrilheiros desarmados à custa de sangue, tortura e lágrimas voltaram do exílio convencidos de que só venceriam se assumissem o comando de um partido de massas. E o ideal para isso seria empregar o charme dos operários do moderno enclave metalúrgico do ABC. Lula, que desprezava os filhinhos de papai do estudantado e os clérigos progressistas, aceitou o papel que lhe cabia de chefe dos desunidos e então reagrupados. Afinal, sua resistência à volta dos ex-armados era só uma: queria dar ordens, nunca seguir instruções. E deixou isso claro a Cláudio Lembo, presidente do PDS paulista e emissário do general Golbery do Couto e Silva enviado a São Bernardo para convencê-lo a apoiar a anistia.

A conquista da máquina pública não derramou sangue dos militantes, que avançaram com sofreguidão sobre os cofres da viúva e os dilapidaram sem dó. Viraram pregoeiros do melhor e mais seguro negócio do mundo: ganhar bilhões sem arriscar a vida, como os traficantes do morro, demandando apenas os sufrágios dos iludidos. A desprezada e velha democracia burguesa virou um pregão de ocasião: só o voto vale. A eleição é a única fonte legítima do poder. Os outros pressupostos do Estado democrático – igualdade de direitos, equilíbrio e autonomia dos Poderes, impessoalidade das instituições – foram esmagados sob o neopragmatismo dos curandeiros de palanque. A polícia, o Ministério Público e a Justiça tornaram-se meros (e nada míseros!) coadjuvantes da sociedade da imunidade que virou impunidade. A lei – ora, a lei... – é só pretexto. Agora, por exemplo, a Lei da Ficha Limpa, de iniciativa popular, é um obstáculo que, se condenado na segunda instância, Lula espera ultrapassar sem recorrer mais apenas às chicanas de hábito, mas também à guerrilha dos recursos. Estes abundam, garantem Joaquim Falcão e Luiz Flávio Gomes, respeitáveis especialistas.

Não importa que a alimária claudique, eles almejam mesmo é acicatá-la. Formados no desprezo à democracia dos barões sem terra e dos comerciantes sem títulos dos séculos 12 e 18, os lulistas contemporâneos consideram o voto, que apregoam como condão, apenas um instrumento da chegada ao poder e de sua manutenção como a guilhotina e a Kalashnikov. José Dirceu, que não foi perdoado por ter delinquido cumprindo pena pelo mensalão, ganhou o direito de sambar de tornozeleira na mansão, conquistada com o suor de seus dedos, por três votos misericordiosos. Dias Toffoli fora seu subordinado. Ricardo Lewandowski criou a personagem Dilma Merendeira. E Gilmar Mendes entrou nessa associação de petistas juramentados como J. Pinto Fernandes, o fecho inesperado do poema Quadrilha, que não se perca pelo título, de Carlos Drummond de Andrade. Celso de Mello e Edson Fachin foram vencidos.

Na semana passada, o ex-guerrilheiro, ex-deputado e ex-ministro estreou coluna semanal no site Nocaute, pertencente ao escritor Fernando Moraes, conhecido beija-dólmã do comandante Castro. Na primeira colaboração, Dirceu convocou uma mobilização nacional no próximo dia 24 de janeiro, em defesa dos direitos do ex-presidente Lula, “seja diante do TRF-4, em Porto Alegre, seja nas sedes regionais do Tribunal Regional Federal” (sic). O post, com o perdão pelo anglicismo insubstituível, é a síntese da campanha que atropela o Código Penal e a Lei da Ficha Limpa, apelando para disparos retóricos e balbúrdia nas ruas, à falta de argumentos jurídicos respeitáveis. Nada que surpreenda no PT, cujo passado revolucionário sempre espreitou para ser usado na hora que lhe conviesse. E a hora é esta.

O voto é apenas lorota de acalentar bovino. Estamos com a lei e o voto, que já lhes faltou no ano passado e dificilmente será pródigo no ano que vem. Mas não podemos vivenciar a fábula A Revolução dos Bichos, de Orwell. Pois o papel de ruminantes é o que nos destinaram. Só nos resta recusá-lo.


José Nêumanne, poeta, jornalista e escritor - O Estado de S. Paulo

sexta-feira, 9 de janeiro de 2015

Até o pescoço, pela liberdade



O “totalitarismo religioso”, para usar as palavras do escritor Salman Rusdhie, não pode achar que o mundo está se curvando a ele
 “Estamos em guerra. Até o pescoço. O Exército Islâmico é o novo nazismo. Quer dominar o mundo, como quando eu era pequeno e vivia sob bombardeio”.

Umberto Eco, autor da frase, é escritor (“O nome da Rosa”) e semiólogo- aquele que estuda a palavra e suas significações. Ele não se preocupou em bordar ou suavizar as palavras com que definiu o massacre de Paris, aquele em que dois psicopatas invadiram a redação do Charlie Hebdo, um jornal satírico, e mataram doze pessoas - entre as quais quatro cartunistas tidos como geniais- a rajadas de suas Kalashnikov e aos gritos de que o profeta Maomé estava vingado. Milhares de pessoas foram às ruas, em Paris e em outras cidades europeias, em solidariedade aos jornalistas mortos e empunhando cartazes que diziam “Je suis Charlie” - todo mundo virou Charlie, e as praças se encheram em defesa da liberdade-porque é disso que se trata.

Mas atrás da poça de sangue que restou da reunião de pauta do Charlie Hebdo, os antropófagos da democracia começaram a roer os ossos dos mortos e a relativizar o ataque dos fanáticos islâmicos e a colocar, como colchão entre a civilização e a barbárie, as suas ponderações recheadas da habitual vigarice ideológica. “Sou contra ataques terroristas, mas…”.

Mas o que? Ao o jornal era muito agressivo e não respeitava a fé islâmica; ah, o ataque vai aumentar a escalada xenofóbica na Europa e vai fortalecer a extrema direita; ah, a liberdade de imprensa tem que ter limites; ah, um jornal satírico não pode ser desrespeitoso com as crenças do outro… e muitos outros mas.

Eles matam, mas a frágil consciência do Ocidente a respeito da riqueza de seus próprios valores civilizatórios, como a democracia, a liberdade e o pluralismo, deixa espaço para que aflore a dúvida:  quem sabe a culpa não seja nossa? Ampliar esse espaço de dúvida e plantar o medo dentro das fissuras que eles abrem a golpes de Kalashnikov, esse é o objetivo tático dos terroristas.

A melhor resposta é ir à rua e proclamar que a estratégia de cercear as liberdades através do medo não funciona. O “totalitarismo religioso”, para usar as palavras do escritor Salman Rusdhie, que já foi vítima de uma fatwa que o condenou à morte, não pode achar que o mundo está se curvando a ele. Se ele perceber que a tática do medo é eficaz, continuará avançando e destruindo as liberdades que encontrar pela frente. Pelas frestas da covardia, a intolerância se instala, se impõe e domina.

É muito simbólico que o ataque tenha sido contra a redação de um jornal, porque é através da liberdade de imprensa que a liberdade de expressão se torna um valor irremovível e inegociável de uma determinada forma de ver e viver o mundo. Mais simbólico ainda que tenha sido contra um jornal humorístico, satírico, desbocado, anárquico, insolente e desrespeitoso contra todas as convenções políticas, sociais e religiosas, mesmo as mais caras às tradições francesas.

Como disse Daniel Cohn Bendit, o revolucionário de 68, o Charlie exagerava nas piadas, sim, mas “essa era a concepção deles, de um jornal satírico onde o exagero era justamente parte da concepção; se você diz que eles exageraram, diz que eles não têm razão de ser. Uma sociedade livre é justamente aquela que suporta o excesso”. A guerra de Umberto Eco, aquela em que estamos metidos até o pescoço, é a guerra pela liberdade.

Por: Sandro Vaia Jornalista – O Globo