O
“totalitarismo religioso”, para usar as palavras do escritor Salman Rusdhie,
não pode achar que o mundo está se curvando a ele
“Estamos
em guerra. Até o pescoço. O Exército Islâmico é o novo nazismo. Quer dominar o
mundo, como quando eu era pequeno e vivia sob bombardeio”.
Umberto
Eco, autor
da frase, é escritor (“O nome da Rosa”) e semiólogo- aquele que estuda a
palavra e suas significações. Ele não se preocupou em bordar ou suavizar as
palavras com que definiu o massacre de Paris, aquele em que dois psicopatas
invadiram a redação do Charlie Hebdo, um jornal satírico, e mataram doze
pessoas - entre as quais quatro cartunistas tidos como geniais- a rajadas de suas
Kalashnikov e aos gritos de que o profeta Maomé estava vingado. Milhares de
pessoas foram às ruas, em Paris e em outras cidades europeias, em solidariedade
aos jornalistas mortos e empunhando cartazes que diziam “Je suis Charlie” -
todo mundo virou Charlie, e as praças se encheram em defesa da liberdade-porque
é disso que se trata.
Mas atrás
da poça de sangue que restou da reunião de pauta do Charlie Hebdo, os
antropófagos da democracia começaram a roer os ossos dos mortos e a relativizar
o ataque dos fanáticos islâmicos e a colocar, como colchão entre a civilização
e a barbárie, as suas ponderações recheadas da
habitual vigarice ideológica. “Sou contra
ataques terroristas, mas…”.
Mas o
que? Ao o
jornal era muito agressivo e não respeitava a fé islâmica; ah, o ataque
vai aumentar a escalada xenofóbica na Europa e vai fortalecer a extrema
direita; ah, a liberdade de imprensa tem que ter limites; ah, um jornal
satírico não pode ser desrespeitoso com as crenças do outro… e muitos
outros mas.
Eles
matam, mas a
frágil consciência do Ocidente a respeito da riqueza de seus próprios valores
civilizatórios, como a democracia, a liberdade e o
pluralismo, deixa espaço para que aflore a dúvida: quem sabe a
culpa não seja nossa? Ampliar esse espaço de dúvida e plantar o medo dentro
das fissuras que eles abrem a golpes de Kalashnikov, esse é o objetivo tático
dos terroristas.
A melhor
resposta é ir à rua e proclamar que a estratégia de cercear as liberdades
através do medo não funciona. O “totalitarismo religioso”, para usar as
palavras do escritor Salman Rusdhie, que já foi vítima de uma fatwa que o
condenou à morte, não pode achar que o mundo está se curvando a ele. Se ele
perceber que a tática do medo é eficaz, continuará avançando e destruindo as
liberdades que encontrar pela frente. Pelas frestas da covardia, a intolerância
se instala, se impõe e domina.
É muito
simbólico que o ataque tenha sido contra a redação de um jornal, porque é
através da liberdade de imprensa que a liberdade de expressão se torna um valor
irremovível e inegociável de uma determinada forma de ver e viver o mundo. Mais
simbólico ainda que tenha sido contra um jornal
humorístico, satírico, desbocado, anárquico, insolente e desrespeitoso contra todas as convenções políticas, sociais e
religiosas, mesmo as mais caras às tradições francesas.
Como
disse Daniel Cohn Bendit, o revolucionário de 68, o Charlie exagerava nas
piadas, sim, mas “essa era a concepção deles, de um jornal satírico onde o
exagero era justamente parte da concepção; se você diz que eles exageraram, diz
que eles não têm razão de ser. Uma sociedade livre é justamente aquela que
suporta o excesso”. A guerra de Umberto Eco, aquela em que estamos
metidos até o pescoço, é a guerra pela liberdade.
Por: Sandro Vaia Jornalista – O Globo
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