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terça-feira, 4 de agosto de 2020

Estupro jurisdicional - Folha de S. Paulo

 Hélio Schwartsman

É fácil ver que o caminho escolhido por Alexandre de Moraes, no caso das fake news, não passa no teste kantiano da universalização da regra

[dos ministros do Supremo que se consideram 'supremos' ministros - não todos, há duas ou três exceções - o ministro Moraes é o que se considera o mais 'supremo'.
Talvez o fato de presidir um inquérito em que investiga, denuncia, decreta prisões, julga e condena, fortaleça esse autoconceito, equivocado.]
É preocupante a pretensão do ministro Alexandre de Moraes, do STF, de fazer com que suas decisões no chamado inquérito das fake news valham não apenas para a operação brasileira de empresas como Facebook e Twitter mas também para a internacional. Aqui, o ministro extrapola sua jurisdição e o faz com um viés autoritário. É fácil ver que o caminho escolhido por Moraes não passa no teste kantiano da universalização da regra.

Em vários países da África e do Oriente Médio, a homossexualidade é crime. 
Se juízes dessas nações podem estender sua jurisdição para aplicativos sediados no exterior, então teríamos de aceitar como legítima a ordem de um magistrado da Arábia Saudita para derrubar sites americanos de pornografia e de encontros. 
A moral prevalecente na internet seria a da mais retrógrada das nações.


Obviamente, esse raciocínio não vale apenas para questões relativas a sexo, aplicando-se também a opiniões políticas, estudos científicos, peças artísticas etc. Se é o Taleban que está no poder no Afeganistão, então até o site do Louvre poderia ser censurado, já que traz imagens de estátuas que, na interpretação das autoridades judiciais daquele país, seriam ilegais.

Não há dúvida de que certas fake news e radicalismos, incluindo falas de bolsonaristas, são socialmente nocivos. Por vezes, constituem crimes, que podem e devem ser combatidos. Se a ofensa for séria o suficiente, será um ilícito em qualquer nação, abrindo caminho para a cooperação judicial entre países. [caso da pedofilia; aliás, um jornalista inimigo do presidente Bolsonaro e do Brasil, tentou usar a cooperação internacional no combate a crimes tipo pedofilia, para justificar a pretensão do ministro condutor do inquérito do fim do mundo de ter jurisdição universal.]

Caso contrário, acabarão prevalecendo as normas das nações mais liberais, pois é nelas que as empresas globais de internet tendem a estabelecer-se. E esse é um dos milagres da rede. 
Ela cria uma espécie de concorrência entre legislações nacionais capaz de gerar um círculo virtuoso de promoção da liberdade e do cosmopolitismo. 
A pretensão de Moraes de enquadrar o Facebook é a negação disso. 

 Hélio Schwartsman, colunista - Folha de S. Paulo