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quarta-feira, 12 de agosto de 2020

Nota da CGU é inconstitucional [?]

Merval Pereira - O Globo

Pensamento (a)crítico

A nota técnica da Controladoria Geral da União (CGU) que restringe atuação dos servidores públicos nas redes sociais, mesmo em caráter pessoal, é mais um avanço do governo Bolsonaro sobre as liberdades individuais. Fere a liberdade de expressão e transgride o Pacto Internacional sobre Direito Civis e Políticos, do qual o Brasil é signatário desde 1990.   

A relativização do direito ao pensamento crítico e à liberdade de expressão do agente público está resumida em uma frase: “deve-se verificar se tais direitos não comprometem a reputação do órgão em que estão vinculados, quer desrespeitando ou expondo a instituição, quer praticando atos incompatíveis com os normativos éticos”.  Os deputados Alessandro Molon, do PSB, e Tabata Amaral, do PDT, estiveram ontem na CGU com os ministros Wagner Rosário e Augusto Heleno (GSI) para pedir a revogação da medida, que já está sendo questionada no Supremo Tribunal Federal (STF).

Logo no início das conclusões, há a afirmativa que resume a ópera: “a divulgação pelo servidor de opinião acerca de conflitos ou assuntos internos, ou de manifestações críticas ao órgão ao qual pertença, em veículos de comunicação virtuais, são condutas passíveis de apuração disciplinar”.  Isso quer dizer, perguntou Molon, que um pesquisador do ministério da Saúde não pode criticar a orientação para uso de cloroquina no combate à Covid-19? Essa mesma atitude estaria enquadrada no “descumprimento do dever de lealdade” ressaltado pela nota técnica. Mas lealdade a quem, à Saúde Pública ou ao ministro da vez?

A professora da Universidade de Brasília (UnB) Laura Schertel Mendes, doutora em direito privado pela Universidade Humboldt de Berlim, com tese sobre proteção de dados na Alemanha, entende que a Nota Técnica da CGU “apresenta problemas sérios de constitucionalidade, ao violar a liberdade de expressão do servidor público”, pois determina que a Administração Pública Federal deverá adotar medidas disciplinares contra servidores que se manifestem em redes sociais de forma contrária ao órgão ao qual está subordinado.

Voltando-se à presença e à manifestação de servidores públicos em redes sociais e ambientes virtuais, mesmo que privados e sem qualquer relação com a atividade pública por ele desempenhada, a nota técnica representa “clara violação da liberdade de expressão do servidor público, dado que a Constituição Federal lhe assegura o direito à livre manifestação, à filiação partidária e ao exercício pleno de atividade política, sem qualquer limitação nos moldes previstos pela orientação da CGU”.


[alguns pontos não podem  ser esquecidos e/ou relevados, por inaceitáveis e até criminosos:
- deve constituir falta grave que servidores públicos atuem em redes sociais ou equivalentes, para trato de assuntos privados, políticos e que não relação com suas atribuições funcionais,  durante o expediente ou  da repartição em que estão lotados (ou que tenham acesso ainda que temporário devido devido sua condição funcional) - ainda que utilizando equipamento de sua propriedade e que permita o acesso.
Aos esquecidos: nenhuma empresa privada permite tal acesso e quando permite se vale de vedações  diversas, com destaque especial proibindo comentários desfavoráveis à empresa - qual a razão de que funcionários públicos, pagos com recursos públicos = dinheiro dos impostos que pagamos = tenham tratamento diferente?

- É aceitável que servidores fora do horário de expediente, fora da repartição, acessem redes sociais ou assemelhadas e conversem sobre qualquer assunto, desde que não seja caracterizada, exposta, sua condição de funcionário público, especialmente, sem limitar, para fundamentar opinião.
- ideia infeliz a de invocar pacto internacional para transgredir normas internas do Brasil - pactos internacionais são assuntos de Estado e devem ser seguidos nas relações institucionais, sendo inaceitável que cada cidadão tenha a prerrogativa de interpretar ao seu livre arbítrio.
Eventuais normas que permitam ou restrinjam atividades de cidadãos brasileiros, no Brasil, devem ser devidamente esclarecidas, normatizadas, por órgãos governamentais.

Imagine o CAOS CAÓTICO, melhor dizendo: a ZONA que vai se instalar em no Brasil se cada brasileiro ao praticar determinado ato, invocar o artigo tal,a cláusula, tal do pacto tal.]



 A professora Laura Schertel identifica “caráter intimidatório” na nota técnica, podendo até mesmo “configurar censura prévia”. Além disso, ela vê possível “um nefasto efeito colateral dessa orientação disciplinar, que é a inibição do agente público de expor suas críticas à atuação do órgão e, até mesmo, denúncias sobre ilegalidades no trato da coisa pública, o que viola os princípios da transparência e da publicidade da Administração Pública”.  O advogado Ronaldo Lemos, especialista em tecnologia e mídias  
sociais, destaca que essas proibições contidas na nota técnica da CGU ferem o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, do qual o Brasil é signatário, especialmente o artigo 19, que diz:

1 - Ninguém poderá ser molestado por suas opiniões.

 2 - Toda pessoa terá direito à liberdade de expressão; esse direito incluirá a liberdade de procurar, receber e difundir informações e idéias de qualquer natureza, independentemente de considerações de fronteiras, verbalmente ou por escrito, em forma impressa ou artística, ou por qualquer outro meio de sua escolha.

3 - O exercício do direito previsto no parágrafo 2 do presente artigo implicará deveres e responsabilidades especiais. Conseqüentemente, poderá estar sujeito a certas restrições, que devem, entretanto, ser expressamente previstas em lei e que se façam necessárias para:

a) assegurar o respeito dos direitos e da reputação das demais pessoas;

b) proteger a segurança nacional, a ordem, a saúde ou a moral públicas.


Uma nota técnica não tem o poder de revogar um tratado internacional, e uma divergência quanto a uma medida governamental não parece alcançada pelas ressalvas acima.  


Merval Pereira, colunista - O Globo