Demétrio Magnoli
Com fórmula 'Povo e Exército', Bolsonaro inspira-se no chavismo para ensaiar ruptura institucional - Enquanto isso, chefes militares renunciam a prestar continência à Constituição e repelir a politização dos quartéis
Engana-se quem interpretou a militarização do núcleo político do governo
como sinal de marginalização dos extremistas do bolsonaro-olavismo.
Depois de recolher suas bravatas vazias contra a ditadura de Maduro,
Jair Bolsonaro inspira-se no chavismo para ensaiar uma ruptura
institucional. “O Povo e o Exército” —a fórmula chavista orienta os dois
motins paralelos estimulados pelo presidente contra a democracia. A
estratégia avança à sombra do temor dos líderes parlamentares e dos
comandantes militares, que se curvam diante do espectro disforme das
redes sociais.
[Começa a surgir em parte da Imprensa uma tentativa de vincular à convocação de uma manifestação pacífica de apoio ao Governo Bolsonaro em um ato nos moldes que a Venezuela realiza.]
O motim da PM do Ceará distingue-se de tantos tumultos policiais
anteriores porque brotou no terreno da política, apenas tomando carona
em reivindicações corporativas. Há meses, as redes virtuais olavistas
operam nos quartéis das PMs. Um vereador-sargento de Sobral ligado às
hostes de Bolsonaro insuflou os amotinados. O clã presidencial mal
esconde seu apoio à baderna. [apenas lembrando que o Ceará é governado pelo PT, partido majoritariamente formado e orientado por adeptos do quanto pior, melhor.
Tanto que a politização é tamanha que o governo do Ceará, ao propor um aumento - 135 - utilizou o número do seu partido.]
A letra da lei não assusta os arruaceiros que copiam os métodos das
facções. Quando Cid Gomes avançou, irresponsavelmente, com uma
escavadeira, exprimia uma justa indignação. Aceitaremos, de braços
cruzados, a transmutação da PM em milícia politizada? Sim, claro,
respondeu Sergio Moro: “o governo federal veio para serenar os ânimos,
não para acirrar”.
[Salário de policial militar é da competência dos estados.
A ação das tropas federais é para ser dirigida à proteção da população. Negociações e demais aspectos é assunto do governo estadual, o que inclui a disciplina dos policiais militares.
Para entrar em conflito com a polícia, cercando quartel, etc., o governo federal teria que antes decretar a intervenção federal no Ceará, o que não é, pelo menos ainda, o caso.] No lugar de cercar os quartéis invadidos, cortar luz e água, exigir a
rendição dos amotinados, as forças federais limitaram-se a substituir a
polícia no patrulhamento das ruas, oferecendo aos bandidos em uniforme
um tempo extra para o exercício da chantagem. “Serenar os ânimos”: o
governo estadual, desarmado, deve enfrentar sozinho os milicianos
armados. A novela ruma às conclusões previsíveis: negociação e, lá
adiante, anistia. O crime compensa.
O 15 de março nasceu da divisão no entorno militar de Bolsonaro. A
adesão de Augusto Heleno ao extremismo abriu caminho para a convocação
de marchas contra o Congresso, que têm o respaldo explícito do
presidente. Não se trata, ainda, de consumar a ruptura, mas de testar a
espinha dorsal das instituições democráticas. A meta é acuar, intimidar.
Os alvos explícitos são os parlamentares e o STF. Mas, paralelamente,
investe-se na agitação da oficialidade: o Povo e o Exército. [destaque-se que nenhum dos meios que convocam à população para a manifestação faz menção ao Judiciário e/ou Legislativo - óbvio que os inimigos do presidente Bolsonaro = inimigos do Brasil = podem também veicular convocações fake para o evento.]
As declarações evasivas de Hamilton Mourão evidenciam uma rendição.
Protestos contra o Congresso certamente “fazem parte da democracia”, mas
não uma convocação a eles oriunda do chefe do Executivo. Os paralelos
apropriados são com a “marcha sobre Roma” de Mussolini ou os cercos à
Assembleia Nacional promovidos por Maduro. Celso de Mello foi ao ponto
quando disse que Bolsonaro “desconhece o valor da ordem constitucional”
e, portanto, “não está à altura do cargo que exerce”.
No início, o cordão de generais do Planalto definia limites à retórica
presidencial. Desde a demissão de Santos Cruz e o bombardeio virtual
contra Mourão, os homens estrelados baixaram a cabeça. Como no caso das
PMs, as redes extremistas engajam-se na cooptação de oficiais da ativa
de escalão intermediário, ameaçando a disciplina militar. Santos Cruz
tem razão ao alertar para o risco de “confundir o Exército com assuntos
temporários de governo, partidos políticos e pessoas”.
Bolsonaro imagina que é capaz de mobilizar incontáveis milhões pois
enxerga nas suas redes sociais a imagem do Povo. Os líderes do Congresso
e os comandos das Forças Armadas compartilham a ilusão presidencial.
Daí, o temor geral de pronunciar a palavra “Basta!”.
Os chefes militares renunciam a prestar continência à Constituição e
repelir a politização dos quartéis. Os políticos vacilam diante do
imperativo de deflagrar um processo de impeachment. A opção pelo
apaziguamento encorajará os extremistas a avançar mais um passo,
testando uma nova fronteira. Às vezes, as democracias morrem de uma
enfermidade chamada medo.
Demétrio Magnoli, sociólogo - Folha de S. Paulo