“E conhecereis a verdade e a verdade vos libertará.”
Bolsonaro venceu as eleições citando com frequência esse versículo de
João. No entanto, não se conhece na História moderna do Brasil um
governo que tenha combatido a verdade em todos os níveis. Os números do desemprego, compilados pelo IBGE de acordo com métodos
internacionalmente reconhecidos, foram negados por Bolsonaro. O índice de desmatamento na Amazônia obtido com ajuda de satélites foi contestado
por Bolsonaro e o cientista Ricardo Galvão, demitido.
Pesquisas da Fundação Oswaldo Cruz sobre consumo de drogas no Brasil foram engavetadas porque não atendiam às expectativas do governo. A briga contra os dados não se limitou ao choque contra o trabalho científico. Ele se estendeu de forma perigosa contra a própria possibilidade de acesso às informações oficiais. Com a anuência de Bolsonaro, o general Hamilton Mourão tentou fazer passar uma diretiva que permitia a funcionários de segundo escalão determinar o que era ou não passível de ser classificado como material secreto. A diretiva de Mourão caiu no Congresso. Mal começou a pandemia, Bolsonaro, usando-a como pretexto, queria suspender parcialmente a Lei de Acesso à Informação. De novo foi derrotado, dessa vez no Supremo Tribunal Federal.
A apoteose dessa medida obscurantista foi na semana que passou, com a decisão de censurar as informações sobre a pandemia de covid-19.
Inicialmente, um homem chamado Carlos Wizard, um bilionário que supõe entender de tudo, disse, em nome do governo, que os números de mortos estavam sendo inflacionados nos Estados e municípios porque os gestores queriam mais dinheiro. Wizard foi para o espaço no momento em que se articulava na rede um boicote a suas atividades empresariais, incluídas as de greenwashing, aquelas em que você ganha dinheiro fingindo que protege o meio ambiente. Mas foi Bolsonaro que, radicalizando sua política de negação da pandemia, ordenou que as notícias diárias sobre mortes e contaminações não poderiam ser divulgadas antes dos jornais noturnos de TV. E, mais ainda, ordenou que o número de mortos não poderia ultrapassar mil, sem explicar como combinaria com o vírus. Felizmente, as emissoras se deram conta e passaram a divulgar as notícias em plantões especiais, com audiência até maior que no início da noite.
O site do Ministério da Saúde saiu do ar. Voltou sem o número total de mortos. O governo queria baixar esse número e divulgar apenas a quantidade óbitos nas últimas 24 horas, sepultando o resultado do exame de outras mortes que não ficaram prontos no mesmo dia. Com esse expediente, o número de mortos iria baixar, pois nem todos os exames ficam prontos no mesmo dia. Felizmente, todos perceberam. Uma onda de protesto percorreu o País, unindo Estados, Congresso, TCU, órgãos de informação, cientistas e opinião pública. A repercussão internacional também foi imediata. Jornais europeus criticaram, a própria OMS se pronunciou pela transparência. [A OMS não tem moral para falar de transparência - em menos de duas semanas conseguiu expedir - talvez expelir defina melhor - duas recomendações logo desrecomendadas, sobre o coronavírus = combate à doença e contágio.]
O que aconteceu de forma escandalosa nesse momento é apenas resultado da luta de Bolsonaro contra a verdade, palavra que usou na campanha para enganar os eleitores, revestindo-a com um invólucro religioso. A luta permanente contra a transparência é uma luta contra a democracia. Os militares, no período ditatorial, tentaram esconder um surto de meningite. Mas os tempos são outros. A mais recente investida de Bolsonaro contra a realidade se deu na arena em que ele está apanhando muito dela: a do avanço da pandemia do coronavírus. Ele começou tachando-a de uma gripezinha. Não era. Questionou o isolamento social, o número de mortos, a existência de outras doenças entre os que foram levados pela covid-19. Um diretor da Polícia Rodoviária Federal caiu porque lamentou em nota a morte por covid-19 de um de seus comandados.
Diante da morte real, bolsonaristas começaram a contestar o conteúdo dos caixões. Houve vídeos afirmando que os caixões estavam cheios de tijolos. A deputada Zambelli chegou a insinuar que um caixão no Ceará estava vazio – é a mesma deputada intimada a depor sobre fake news e a mesma que aparece na internet, durante a campanha, dizendo que as lojas Havan pertenciam à filha de Dilma. Olha que audácia, refletia ela, usam o nome de Havan em homenagem a Cuba e erguem uma Estátua da Liberdade. Mais tarde, ficou claro para o Brasil quem é dono da Havan. Aliás é impossivel ignorá-lo, com sua cabeça reluzente, vestido de verde e amarelo É desses seres que você não precisa perguntar quem é seu líder, pois sabe que ele o levará direto ao Palácio do Planalto.
Ao lado do armamento da população, essa luta contra a verdade é um passo decisivo rumo a um governo autoritário. Uma espontânea frente pela transparência se formou esta semana. Exatamente na semana em que as pessoas, apesar da pandemia, foram às ruas com a imensa faixa “todos pela democracia”. [as pessoas foram às ruas para protestar contra duas situações de morte envolvendo um afrodescendente (USA) e outra envolvendo um garoto de 14 anos.
Anarquistas da esquerda pegaram carona na manifestação e alguns empunhavam faixas com os dizeres acima.]
Parece vago, dizem alguns políticos. Calma, digo eu. Daqui a pouco tudo fica mais claro. Na luta comum, aparecem as respostas.
Blog do Gabeira - Fernando Gabeira, jornalista
Artigo publicado no Estadão em 12/06/2020
Pesquisas da Fundação Oswaldo Cruz sobre consumo de drogas no Brasil foram engavetadas porque não atendiam às expectativas do governo. A briga contra os dados não se limitou ao choque contra o trabalho científico. Ele se estendeu de forma perigosa contra a própria possibilidade de acesso às informações oficiais. Com a anuência de Bolsonaro, o general Hamilton Mourão tentou fazer passar uma diretiva que permitia a funcionários de segundo escalão determinar o que era ou não passível de ser classificado como material secreto. A diretiva de Mourão caiu no Congresso. Mal começou a pandemia, Bolsonaro, usando-a como pretexto, queria suspender parcialmente a Lei de Acesso à Informação. De novo foi derrotado, dessa vez no Supremo Tribunal Federal.
A apoteose dessa medida obscurantista foi na semana que passou, com a decisão de censurar as informações sobre a pandemia de covid-19.
Inicialmente, um homem chamado Carlos Wizard, um bilionário que supõe entender de tudo, disse, em nome do governo, que os números de mortos estavam sendo inflacionados nos Estados e municípios porque os gestores queriam mais dinheiro. Wizard foi para o espaço no momento em que se articulava na rede um boicote a suas atividades empresariais, incluídas as de greenwashing, aquelas em que você ganha dinheiro fingindo que protege o meio ambiente. Mas foi Bolsonaro que, radicalizando sua política de negação da pandemia, ordenou que as notícias diárias sobre mortes e contaminações não poderiam ser divulgadas antes dos jornais noturnos de TV. E, mais ainda, ordenou que o número de mortos não poderia ultrapassar mil, sem explicar como combinaria com o vírus. Felizmente, as emissoras se deram conta e passaram a divulgar as notícias em plantões especiais, com audiência até maior que no início da noite.
O site do Ministério da Saúde saiu do ar. Voltou sem o número total de mortos. O governo queria baixar esse número e divulgar apenas a quantidade óbitos nas últimas 24 horas, sepultando o resultado do exame de outras mortes que não ficaram prontos no mesmo dia. Com esse expediente, o número de mortos iria baixar, pois nem todos os exames ficam prontos no mesmo dia. Felizmente, todos perceberam. Uma onda de protesto percorreu o País, unindo Estados, Congresso, TCU, órgãos de informação, cientistas e opinião pública. A repercussão internacional também foi imediata. Jornais europeus criticaram, a própria OMS se pronunciou pela transparência. [A OMS não tem moral para falar de transparência - em menos de duas semanas conseguiu expedir - talvez expelir defina melhor - duas recomendações logo desrecomendadas, sobre o coronavírus = combate à doença e contágio.]
O que aconteceu de forma escandalosa nesse momento é apenas resultado da luta de Bolsonaro contra a verdade, palavra que usou na campanha para enganar os eleitores, revestindo-a com um invólucro religioso. A luta permanente contra a transparência é uma luta contra a democracia. Os militares, no período ditatorial, tentaram esconder um surto de meningite. Mas os tempos são outros. A mais recente investida de Bolsonaro contra a realidade se deu na arena em que ele está apanhando muito dela: a do avanço da pandemia do coronavírus. Ele começou tachando-a de uma gripezinha. Não era. Questionou o isolamento social, o número de mortos, a existência de outras doenças entre os que foram levados pela covid-19. Um diretor da Polícia Rodoviária Federal caiu porque lamentou em nota a morte por covid-19 de um de seus comandados.
Diante da morte real, bolsonaristas começaram a contestar o conteúdo dos caixões. Houve vídeos afirmando que os caixões estavam cheios de tijolos. A deputada Zambelli chegou a insinuar que um caixão no Ceará estava vazio – é a mesma deputada intimada a depor sobre fake news e a mesma que aparece na internet, durante a campanha, dizendo que as lojas Havan pertenciam à filha de Dilma. Olha que audácia, refletia ela, usam o nome de Havan em homenagem a Cuba e erguem uma Estátua da Liberdade. Mais tarde, ficou claro para o Brasil quem é dono da Havan. Aliás é impossivel ignorá-lo, com sua cabeça reluzente, vestido de verde e amarelo É desses seres que você não precisa perguntar quem é seu líder, pois sabe que ele o levará direto ao Palácio do Planalto.
Ao lado do armamento da população, essa luta contra a verdade é um passo decisivo rumo a um governo autoritário. Uma espontânea frente pela transparência se formou esta semana. Exatamente na semana em que as pessoas, apesar da pandemia, foram às ruas com a imensa faixa “todos pela democracia”. [as pessoas foram às ruas para protestar contra duas situações de morte envolvendo um afrodescendente (USA) e outra envolvendo um garoto de 14 anos.
Anarquistas da esquerda pegaram carona na manifestação e alguns empunhavam faixas com os dizeres acima.]
Parece vago, dizem alguns políticos. Calma, digo eu. Daqui a pouco tudo fica mais claro. Na luta comum, aparecem as respostas.
Blog do Gabeira - Fernando Gabeira, jornalista
Artigo publicado no Estadão em 12/06/2020