O Globo
Importador chinês quer produtos com sustentabilidade. Retórica contra o meio ambiente e de crítica às terras indígenas pode ter impacto no agro
[para que um consumidor, chinês ou não, possa exigir informação sobre o que come, de onde vem e como é produzido, é necessário que ele tenha opção se não gostar da resposta.
Óbvio que sustentabilidade é importante, só que dentro de limites e do que é possível. Convenhamos que ser o índio o maior latifundiário no Brasil é um absurdo. Afinal, quem pode cultivar, usando métodos primitivos, centenas de hectares de terra?
Reservas indígenas são necessárias, mas, guardando uma proporção entre o número de indígenas moradores e dispostos a trabalhar e a área da terra.
50.000 hectares para 12 índios é inconcebível.]
O presidente da maior trading chinesa, a Cofco, veio se reunir com
empresários do agronegócio brasileiro e deu o seguinte recado: “Nós
vamos comprar mais de vocês desde que seus produtos tenham
sustentabilidade.” Os representantes do setor no Brasil estavam
acostumados a ouvir essa exigência dos europeus, mas não dos chineses. A
palavra “sustentabilidade” foi repetida 12 vezes em uma fala de meia
hora do comprador chinês.
São sinais assim que o agronegócio brasileiro tem captado. O consumidor
está mudando, e entre os seus valores está o de querer saber a origem do
que consome. Uma pesquisa, citada pelo executivo da estatal chinesa,
mostrou que 50% dos consumidores chineses de 18 a 35 anos querem saber o
que comem, de onde vem e como é produzido. Quando o presidente Jair Bolsonaro faz uma reunião como a de ontem, em
que, em vez de tratar do combate ao fogo e ao desmatamento, ameaça os
povos indígenas, ele só alimenta a ideia de que o Brasil produzirá a
qualquer custo ambiental e humano. Ele deveria saber que as terras
indígenas são da União e os povos indígenas têm feito um grande trabalho
de proteção desse patrimônio natural do país.
O governo errou sistematicamente, e o Brasil teve uma exposição negativa
gigante nos últimos dias em todos os jornais e televisões do mundo. O
desastre foi provocado por sucessivos atos e palavras de estímulo ao
desmatamento. Os sinais foram dados por Bolsonaro quando atacou o Ibama,
disse que iria criar várias serras peladas na Amazônia, ignorou os
alertas, brigou com os números, ofendeu o Inpe e demitiu seu diretor. O desastre foi escalado pelo ministro Ricardo Salles, que exonerou 21
dos 27 superintendentes regionais do Ibama, ameaçou servidores do ICM
Bio, forçou a demissão do seu presidente e trocou a cúpula do órgão por
policiais militares. Visitou Espigão D’Oeste, onde fora queimado um
caminhão-tanque com combustível que faria uma operação do Ibama, para se
solidarizar com madeireiros. O ministro desmontou o Fundo Amazônia e
ludibriou o debate com dados falsos ou meias verdades.
Como isso foi entendido em Novo Progresso? Ou em todo o arco do
desmatamento? O dia do fogo nasce da compreensão de que a coalizão que
junta maus produtores, grileiros, madeireiros ilegais, invasores de
terras indígenas havia vencido a parada. Sempre houve um equilíbrio
precário nessa queda de braço dos dois lados. O Estado com os órgãos do
executivo — Ibama, ICM bio, Inpe, Polícia Federal — o Ministério
Público, o Judiciário, os cientistas e as ONGs estiveram trabalhando
para derrubar a taxa de invasão, destruição e queimada da Amazônia.
Quando o governo pisca nesse saloon, os bandidos se fortalecem. E nesse
caso foi mais do que piscada. O governo deu estridentes sinais de que
mudou de lado.
Isso afeta diretamente a economia. A China é nosso maior mercado, e até
recentemente considerava-se que ela absorveria tudo o que produzíssemos
sem perguntar a que preço. Até eles estão mudando. A Europa é outro
parceiro essencial. O governo está assustando os consumidores dos nossos
produtos. É por isso que tantos empresários do setor levantaram a voz
em defesa do meio ambiente.
Em momento como este em que os ânimos estão acirrados, os diplomatas são
mais necessários para trazer racionalidade ao debate. O Itamaraty, ao
invés disso, fez uma nota cheia de cobranças. Indevidas.
O Brasil não está cumprindo o que prometeu internacionalmente. Deveria
estar caminhando para uma taxa de 3,8 mil km2 de desmatamento em 2020. O
ano passado foi 7,5 mil e este ano há o risco de passar de 10 mil. O
compromisso era derrubar em 80% o desmatamento em relação à média de
1995 a 2005. Como no governo Lula a taxa caiu fortemente, e continuou assim até os
4,6 mil km2 de 2012, o Brasil estava perto da meta. Mas começou a se
distanciar dela nos anos finais do governo Dilma, depois no período
Temer. Agora, quando temos que corrigir a rota, o governo Bolsonaro
acelera na contramão da História. Essa exposição negativa na imprensa mundial, esse recado do trader
chinês alertam sobre o perigo econômico e ambiental. Os consumidores do
mundo querem comprar o alimento brasileiro, mas não ao custo da ameaça
aos povos indígenas, não ao custo da destruição da Amazônia, bioma que é
amado em todo o planeta.
Míriam Leitão - Coluna em O Globo