O golpe se tornou hoje uma espoleta disparadora de radicalismos
Hoje, há 55 anos, um general em fim de carreira rebelou-se em Juiz de
Fora (MG), onde comandava mesas. [comentário: curiosidade - as mesas comandadas pelo general Olimpio Mourão Filho se movimentavam, tinham diversas aparências - deste soldados armados a pé, viaturas e tanques - e chegaram ao Rio de Janeiro deflagrando O Movimento Revolucionário de 31 de março de 1964.
Foram tais 'mesas', comandadas com firmeza pelo general de divisão Mourão Filho, que salvaram nossa Pátria Amada do jugo comunista - a propósito, temos um outro Mourão, também general, que é o vice-presidente da República e nessa data está exercendo a presidência da República.
Considerando que a decisão judicial que levou o presidente Bolsonaro a substituir os verbos, foi corrigida, nada mais justo que o verbo volte a ser COMEMORAR, CELEBRAR, HOMENAGEAR e outros sinônimos.] Em pouco mais 24 horas o governo
constitucional do presidente João Goulart estava no chão. Em 1944
ninguém discutia o golpe militar de 1889, e em 1985 não se discutiu a
deposição do presidente Washington Luiz. Em 2019 discute-se 1964 porque
ele virou um par de unhas encravadas nos pés da direita e da esquerda,
uma espoleta disparadora de radicalismos. Na sua versão recente, Jair
Bolsonaro (PSL) falou em "comemorar" a data. Depois corrigiu-se, com um
"rememorar".
Bolsonaro tem uma visão pessoal da história. Ele disse que "não foi uma
maravilha regime nenhum. E onde você viu uma ditadura entregar pra
oposição de forma pacífica o governo? Só no Brasil. Então, não houve
ditadura." Nesse caso, também não houve ditaduras no Chile e na Espanha. De certa
maneira, não teria havido ditadura nem na União Soviética.
A deposição de Jango em 1964 foi um golpe que desembocou numa ditadura
constrangida que escancarou-se em 1968. Goulart foi apeado por uma
revolta militar vitoriosa e pelo presidente do Congresso, que declarou a
vacância do cargo enquanto seu titular estava no Brasil. A posse do
presidente da Câmara, no meio da madrugada de 3 de abril, foi enfeitada
pelo presidente do Supremo Tribunal Federal, mas não tinha amparo na
lei. (Dilma Rousseff foi deposta de acordo com o devido processo legal.)
A deposição de Jango foi pedida e saudada por quase toda a grande
imprensa e por multidões que foram à rua festejando-a. Havia mais povo
na Marcha da Família realizada em São Paulo no dia 19 de março do que no
comício janguista do dia 13. Se Jango foi deposto para que fosse preservado o regime democrático,
esse sonho durou uma semana e se acabou quando os chefes militares
baixaram um Ato Institucional que cassou mandatos, suspendeu direitos
políticos e demitiu juízes, generais e servidores civis.
A ditadura foi desafiada por um surto terrorista e reagiu instituindo a
tortura e a execução de dissidentes como política de Estado. A isso
Bolsonaro chama de "probleminhas" e o general Hamilton Mourão, de
"guerra". A ditadura brasileira está mal digerida porque de um lado alimentam-se
teorias como a dos "probleminhas" e a da "guerra". De outro, chamam-se
ações terroristas de "luta contra a ditadura", quando o objetivo de algo
como mil militantes de organizações de esquerda era a implantação da
ditadura deles.
Aqui vão dois casos ilustrativos dessas duas fantasias:
Em 1968, o Comando de Libertação Nacional (o Colina, com cerca de 50
militantes) localizou no Rio o capitão boliviano que um ano antes
participara da captura do Che Guevara na Bolívia. Ele morava na Gávea.
Em julho, cinco meses antes da edição do AI-5, numa ação que envolveu
três terroristas, mataram-no a tiros. Em seu manifesto de criação o Colina dizia que "a luta armada é a única
forma de dar consequência à luta do povo brasileiro" e "o terrorismo,
como execução (nas cidades e nos campos) de esbirros da reação, deverá
obedecer a um rígido critério político".O "capitão boliviano" era o major alemão Otto von Westernhagen, e o Colina fez de conta que nada teve a ver com o crime. (Aos 21 anos, Dilma Rousseff militava no Colina. Não há registro de que tenha participado pessoalmente de ações terroristas.)
Quatro anos depois do assassinato de Westernhagen, o Exército descobriu
um projeto guerrilheiro do Partido Comunista do Brasil na floresta do
Araguaia (PA).
(...)
Isso é guerra?
Enquanto se falar em "luta armada contra a ditadura" e em "guerra", 1964 continuará sendo unha encravada, uma em cada pé.
Elio Gaspari, jornalista - Folha de S. Paulo - O Globo