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sexta-feira, 24 de março de 2023

O ministro do atraso - Revista Oeste

Silvio Navarro

Com ideias 'geniais' e fixação pelo Porto de Santos, Márcio França irrita até Lula e pode promover um verdadeiro retrocesso no saneamento básico do país 

 Márcio França, ministro de Portos e Aeroportos no governo Lula  | Foto: Montagem Revista Oeste/Shutterstock

Márcio França, ministro de Portos e Aeroportos no governo Lula | Foto: Montagem Revista Oeste/Shutterstock  

 Quando o presidente Luiz Inácio Lula da Silva finalmente terminou de nomear seu imenso primeiro escalão do governo, o brasileiro percebeu que o país poderia retroceder 20 anos em sua história. 
Um ministro, contudo, parece mais empenhado na tarefa do que os demais: Márcio França, cota do PSB, colocado na pasta de Portos e Aeroportos. 
 
Em menos de três meses, França já ameaçou desfigurar o Marco do Saneamento Básico, impedir privatizações, como a do Porto de Santos e de companhias estaduais de trens urbanos, de água e esgoto — especialmente a Sabesp —, e rever as regras da navegação de cabotagem. 
Do seu gabinete, também partiu a ideia genial de imprimir 12 milhões de passagens aéreas, ao custo de R$ 200, para estudantes, funcionários públicos e aposentados. 
No caso dos bilhetes aéreos, a fala provocou mal-estar com o ministro da Casa Civil, Rui Costa, que não sabia do plano de voo. 
Como o seu gabinete fica no andar superior ao de Lula, Rui Costa foi se queixar pessoalmente com o chefe. 
O presidente tratou do assunto publicamente, mas sem citar o nome de França, para não inflamar uma crise com o partido do vice, Geraldo Alckmin. 
Nenhum ministro, entretanto, teve dúvida de que o recado tinha endereço certeiro: era para Márcio França, cuja ideia inovadora amanhecera em todas as manchetes da imprensa. Até agora ele não disse o valor da contrapartida para as empresas aéreas que o governo terá de bancar — nem de onde vai sair esse dinheiro. 

“É importante que, antes de anunciar, os ministros façam uma reunião com a Casa Civil, para que a Casa Civil discuta com a Presidência, e a gente possa chamar o autor da genialidade”, afirmou. “Não queremos propostas de ministros. Todas as propostas de ministros devem ser transformadas em propostas de governo” 

O caso não foi o único que irritou Lula. O ministro também fez uma série de pronunciamentos contra a privatização do Porto de Santos, no litoral paulista, às vésperas do embarque da comitiva brasileira para a China. O país asiático é o principal parceiro comercial do Brasil e o destino de US$ 90 bilhões em exportações no último ano
Catorze Estados têm a China como principal destino do desembarque de mercadorias, sobretudo contêineres de grãos, carne e celulose. 
Outros 12 importam dos chineses grande volume de eletrônicos, acessórios e peças para a indústria de transformação. 
A porta de entrada e de saída é justamente o Porto de Santos. A China foi surpreendida com a insistência do ministro em “atravessar” o processo de privatização. 

Além disso, Lula resolveu levar para a China mais de 240 empresários, a maioria do setor agropecuário. O escoamento da produção dessas empresas é feito por meio de contêineres de Santos. Eles também não gostaram da chegada do ministro à mesa de negócios. 

Saneamento básico
Poucas ações na esfera pública podem mudar tanto a vida de populações inteiras quanto o acesso ao saneamento básico. O marco legal para o setor está em vigor há pouco mais de dois anos, aprovado durante o governo de Jair Bolsonaro, e já produziu resultados.

Antes mesmo de tomar posse, Márcio França se juntou ao deputado Guilherme Boulos (Psol-SP), líder do movimento dos sem-teto, para propor a revisão do Marco Regulatório do Saneamento. O argumento é que o Estado não deve entregar o serviço para a iniciativa privada

A estratégia foi bem simples: depois dos vencimentos dos contratos, as empresas públicas terão de competir com empresas privadas em licitação. A meta é a universalização do saneamento em dez anos: água potável, tratamento de esgoto, limpeza urbana e manejo de resíduos sólidos e águas de chuvas. Segundo dados do Instituto Trata Brasil, 35 milhões de pessoas não tinham acesso à água tratada e 100 milhões ao serviço de esgoto até 2020.  

Desde então, o país realizou dez concorrências públicas. Mais de 200 cidades já foram beneficiadas, num total de 20 milhões de pessoas só com as primeiras obras. O investimento privado foi de R$ 70 bilhões. 
Antes de deixar o Ministério do Desenvolvimento Regional, no governo Jair Bolsonaro, o hoje senador Rogério Marinho disse que o país precisa de R$ 700 bilhões para resolver todos os problemas. 
Ou seja, há um longo caminho pela frente — se o governo Lula deixar. 

Antes mesmo de tomar posse, Márcio França se juntou ao deputado Guilherme Boulos (Psol-SP), líder do movimento dos sem-teto, para propor a revisão do Marco Regulatório do Saneamento. O argumento é que o Estado não deve entregar o serviço para a iniciativa privada. “A regra resultou na não participação social e dos agentes de políticas públicas na formulação das normas”, dizia o texto. Eles ajudaram a redigir o relatório apresentado pelo grupo de mil pessoas que se reuniu em Brasília, durante dois meses, na chamada transição de governo. 

O plano de França e Boulos era retirar da Agência Nacional de Águas (ANA) a competência sobre regras de saneamento e passá-las para as mãos do ministro das Cidades. Sugeriram criar a Secretaria Nacional do Saneamento. Na época, tanto França quanto Boulos queriam a cadeira de ministro das Cidades. Nenhum dos dois foi escolhido. França, contudo, continua fazendo lobby contra as empresas privadas. 

“A posição da maior parte dos partidos que sustentam a coligação do presidente Lula no Congresso quando foi votar o marco é que é muito prejudicial o processo de privatização do saneamento”, disse Boulos. “Os decretos que regulamentam o Marco do Saneamento, a gente sugeriu a revogação”, afirmou França. 

Ministro atracado
Um dos avanços da gestão de Tarcísio de Freitas
, hoje governador de São Paulo, na área de infraestrutura, foi a chamada BR do Mar, que trata da navegação de cabotagem — ligação entre portos do país. O Brasil tem 8,5 mil quilômetros de costa
A cabotagem atende hoje a 13% do transporte de carga. 
A medida flexibilizou o fretamento de navios com bandeira estrangeira para executar o serviço, já que a indústria naval brasileira não dá conta da demanda.  
O ministro Márcio França é contra, pela “soberania nacional”. 
 
A ideia do socialista é um retrato da vanguarda do atraso: basta calcular quantos caminhões lotados de carga cabem num único navio. 
Outro detalhe: não há acidentes, avarias na carga e polui menos o ambiente. Então resta a pergunta: qual a importância da bandeira estrangeira no navio? 

O ministro voltou a falar sobre o assunto num seminário sobre o tema nesta semana. Em seguida, ouviu o recado de Wilson Lima Filho, diretor da Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq). “É importante para os investidores saber que as regras não vão mudar durante o jogo. 

Márcio França foi prefeito da cidade litorânea de São Vicente duas vezes. Governou o Estado de São Paulo por oito meses, em 2018, quando Alckmin concorreu à Presidência. Foi secretário estadual. Sempre foi conhecido pela boa relação com o empresariado. Durante a campanha eleitoral do ano passado, gostava de dizer que era “a direita da esquerda”. 
 
Na semana passada, o partido Novo questionou o Bolsa Avião”, com assentos a R$ 200. “É sabido que tal nicho é altamente regulamentado pela Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) e que envolve interesses setoriais das mais diversas naturezas”, disse o deputado gaúcho Marcel Van Hattem. 

Por enquanto, o que se pode afirmar é que Márcio França talvez esteja apenas sofrendo de um surto de socialismo aos 60 anos de idade. 

Leia também “Não existe imunidade parlamentar no Brasil”

 Com reportagem de Loriane Comeli

 Silvio Navarro, colunista - Revista Oeste