Folha de S. Paulo - O Globo
A empresa concebida por Dallagnol tirou da sombra um promíscuo mercado de mimos do andar de cima
Deve-se ao procurador Deltan Dallagnol a exposição do próspero mercado
de palestras de autoridades. Em 2018, o doutor recebeu cerca de R$ 300
mil como servidor e planejava a criação de uma empresa de palestras e
eventos que poderia render R$ 400 mil. Dallagnol cobrava R$ 35 mil por
aparição. Como servidor público, recebia mais ou menos isso por um mês
de trabalho. Como celebridade, ganhava a mesma coisa num só dia.
Ficou feio para Deltan, mas ele nada fez de novo, apenas decidiu surfar
num mercado onde misturam-se fama, favores e fetiches. O ex-presidente
Barack Obama cobra US$ 400 mil por uma palestra de 90 minutos. A porca torce o rabo quando o palestrante (horrível palavra) é um
servidor do Estado ou é um cidadão cuja relevância deriva da sua
exposição pública no trato de assuntos políticos ou econômicos.
Jornalistas, por exemplo. Essa circunstância ganha peso quando o valor
da palestra equivale ao salário mensal do convidado. Há empresas,
sobretudo do mundo do papelório, que oferecem uma bandeirada de R$ 30
mil.
Ninguém pode ser penalizado pela fama que tem, mas quando um magistrado,
procurador ou parlamentar é convidado para dar uma palestra por R$ 30
mil, deve desconfiar da benemerência de seu patrocinador. As mensagens
de Dallagnol mostram que uma instituição convidava palestrantes (argh!)
oferecendo-lhes R$ 3 mil, o que pode ser um valor razoável, mas ele
sugeria ao ex-procurador-geral Rodrigo Janot que cobrasse R$ 15 mil,
pois estimava que seu cachê estivesse em R$ 30 mil.
Essas quantias são um dinheirinho fácil. Palestras e eventos, sobretudo
aqueles que acontecem em aprazíveis balneários, transformaram-se em
mecanismos de confraternização do andar de cima. São boas ocasiões para
fazer amigos e influenciar pessoas. Dallagnol concebeu uma empresa que pertenceria à sua mulher e à do seu
colega Roberson Pozzobon. Óbvio, pois eles não poderiam ser os donos,
mas receberiam pelas palestras ou cursos que ministrassem. Nas suas
palavras: “Se fizéssemos algo sem fins lucrativos e pagássemos valores
altos de palestras pra nós.” Novamente, ele não inventou essa roda.
Há uma curiosa coincidência no plano de Dallagnol. A ideia da empresa
ocorreu-lhe em dezembro, dois meses depois da assinatura de um acordo da
Petrobras com o governo americano e um mês antes do fechamento de outro
acordo da empresa com o Ministério Público do Paraná. O acerto colocava
R$ 1,2 bilhão na caixa dos procuradores para que organizassem uma
fundação destinada a incentivar “entidades idôneas, educativas ou não,
que reforcem a luta da sociedade brasileira contra a corrupção”.
O mimo das palestras leva a um beco que parece não ter saída, pois não
se pode impedir que alguém queira pagar para ouvir o que outra pessoa
tem a dizer. Também não se pode exigir que alguém fale por uma hora e
meia e receba apenas um cafezinho. O nó pode ser desatado. Basta que o convidado coloque na rede todas as
palestras que faz, indicando quem pagou e quanto recebeu. Isso poderia
ser obrigatório para servidores públicos em atividade e facultativo para
os demais bípedes.
[inclusões - talvez algumas nos tornem Eremildo, o idiota, mas, vamos a elas:
- vez ou outra ser tentado a pensar em fazer algo errado é inerente a qualquer ser humano - bem como comentar com alguém de sua confiança. Não passando do pensamento, do bate papo, não é crime;
- a empresa pensada, conversada, não saiu do pensamento e do papo - não foi fundada;
- o objetivo da ex-futura possível empresa era legal - lei nenhuma proíbe e o CNJ e CNMP, autorizam tais palestras.
IMPORTANTÍSSIMO: mesmo não sendo ilegal, nada garante que o tal diálogo ocorreu - nada garante a autenticidade de todas 'conversas' divulgadas e cuja obtenção foi produto de crime.
- finalizando, com uma de Eremildo: dinheiro recebido por palestras é renda e deve ser declarado ao Fisco - exigir declaração a outra fonte é incabível, apesar de no Brasil tudo ser possível, tanto que se paga IR sobre salário.]