REBELIÃO NO ALTAR - Católicos questionam a Santa Sé em Nova Friburgo
Religiosos ultraconservadores instalados na Serra
Fluminense, entre eles um bispo inglês que nega o Holocausto, desafiam a
autoridade do Vaticano e atacam o papa
Os valores
católicos são eternos, perenes, e não estão sujeitos a se adequar as mudanças
modernas.
Conservar os
VALORES TRADICIONAIS é DEVER dos católicos e mudanças havidas na segunda metade
do século XX retiraram o caráter solene de muitas cerimônias católicas
Qual o motivo de
deixar de celebrar a Missa em Latim? Prática que tornava o ritual mais solene.
Qual o motivo do
padre deixar de ficar de costas para os fiéis durante a celebração da missa?
A sucessão
apostólica – que torna o bispo sucessor dos Apóstolos – pode ser cassada?
Escondido em um vale
da região de Riograndina, em Nova Friburgo, o Mosteiro da Santa Cruz é um lugar
que convida à meditação. A placidez da serra fluminense, entretanto, camufla um
ambiente em que fervilham conspirações e intrigas que culminaram em uma
rebelião contra o próprio Vaticano. Os monges, padres e bispos ali encastelados
(vários deles estrangeiros) criticam o que consideram excessos liberais
do papa Francisco, rezam as missas em latim e vigiam de perto a conduta de seus
fiéis. Nas últimas semanas, passaram também a constituir os próprios
prelados à revelia da cúpula católica, em uma clara afronta às determinações de
Roma.
No
último dia 19, o padre francês Jean-Michel Faure foi consagrado bispo durante a
festa de São José. No comando da cerimônia estava o bispo inglês Richard
Williamson, um dos principais expoentes
do tradicionalismo católico. Com a consagração não autorizada, Williamson e Faure estão automaticamente excomungados por
violar a lei canônica. Nem eles nem seus companheiros parecem se
importar muito com isso. Em uma nova provocação, no último sábado, 28, véspera
do domingo de Ramos, Faure ordenou padre o monge nicaraguense André Zelaya de
León, um dos nove internos do monastério.
“Nunca recebi nenhum comunicado de que estou fora da Igreja, portanto me julgo capaz de exercer minhas atribuições de bispo”,
disse Faure depois da celebração. O responsável pela instituição, o beneditino
dom Tomás de Aquino Ferreira da Costa, é bem menos político em suas declarações. “Não seguimos a doutrina do papa. Ele é
menos católico que nós”, atacou. A
disputa entre os religiosos de Friburgo e seus superiores tinha tudo para ser
apenas uma futrica de sacristia, mas acabou ganhando uma projeção inesperada.
A rebelião virou notícia em jornais
europeus como o italiano La Stampa, o
alemão Frankfurter
Allgemeine e o inglês The Guardian.
Tudo por causa da presença de Richard Williamson no mosteiro. Nascido em
Londres, o bispo de 74 anos representa
uma das vertentes mais reacionárias do catolicismo e já se envolveu em
encrencas que deram severas dores de cabeça ao Vaticano.
A maior de todas
aconteceu em 2009, durante o pontificado de Bento XVI. Durante uma visita à
Alemanha, Williamson concedeu entrevista a uma emissora de TV da Suécia. Em meio a louvores à tradição católica, deixou
transparecer suas convicções antissemitas, negando a
existência de câmaras de gás nos campos de extermínio nazistas. O que se
seguiu foi um escândalo gigantesco, que enfureceu a chanceler Ângela Merkel e
constrangeu o papa, alemão de nascimento. Na época, Williamson dirigia um
seminário nos arredores de Buenos Aires, na Argentina, de onde foi expulso. Foi
processado na Alemanha e, três anos depois, também acabou sendo expulso da
congregação da qual fazia parte, a
ultraconservadora Fraternidade Sacerdotal São Pio X.
Desde então,
Williamson andava meio sumido. Até reaparecer no início do mês em Nova
Friburgo. Procurado pela reportagem no convento, o inglês mandou avisar que
estava descansando e não iria dar entrevista. Mas em
blogs católicos é possível encontrar trechos de pronunciamentos e textos de sua
lavra nos quais ataca o papado de Francisco, como o e-mail em que qualificou a atual cúpula da Santa Sé
de “cucos modernistas”, uma
referência à ave oportunista que põe seus ovos no ninho de outras espécies.
Quem assiste a uma
cerimônia conduzida pelos religiosos tradicionalistas tem a impressão de viajar
no tempo. Os homens chegam de paletó e gravata em cores escuras e as
mulheres usam vestido discreto e têm a cabeça coberta por véu rendado. Os dois grupos ficam
em espaços separados na igreja e todos trazem o semblante contrito. Os padres
usam vestimentas pomposas, com adereços e detalhes dourados caídos em desuso
nas cerimônias convencionais. O ritual é
em latim e o celebrante reza de costas para os fiéis — um tipo de solenidade chamada de missa tridentina.
Estranhos são recebidos com desconfiança e costumam ficar sob a guarda de
religiosos pouco amistosos, como o padre chileno René Trincado. Na celebração
do sábado 28, era dele a responsabilidade de cadastrar os forasteiros, que,
além de ter de deixar nome e endereço, eram fotografados.
Criado
em 1987, o mosteiro é a parte central de um pequeno
complexo formado ainda por um convento de freiras, uma igreja dedicada a São
Miguel e um colégio para crianças da região, chamado São Bento e Santa Escolástica. Dentro
da propriedade de 30 hectares vivem algumas famílias, que são proibidas de ver
televisão, ouvir rádio e fazer uso de métodos anticoncepcionais. “Se alguém se casa e não nascem filhos,
eles vão investigar o que está acontecendo”, conta um vizinho da propriedade,
amigo de uma das famílias e que pediu para não ser identificado. “Se aparecer uma camisinha lá dentro, vira
uma confusão dos diabos”, diz ele. Apesar
do apego ao passado, o procedimento de arrecadação de donativos é bem moderno.
No site do mosteiro há instruções para depósitos
em bancos no Brasil, na França, na Suíça e na Alemanha, além de orientações
para transferência de valores pela internet, por meio de PayPal.
Os católicos
tradicionalistas surgiram no início dos anos 1970, a partir de um grupo
de clérigos insatisfeitos com as mudanças propostas
pelo Concílio Vaticano II, encerrado em 1965. O bispo francês Marcel Lefebvre (1905-1991) assumiu a liderança
dos descontentes e criou a Fraternidade
Sacerdotal de São Pio X, na Suíça. Atualmente, o grupo conta com 600
sacerdotes e cerca de 400 000 seguidores em todo o mundo. Foi Lefebvre quem
consagrou Williamson bispo em 1988. No
Brasil, o mais notório expoente desse grupo foi o bispo de Campos, dom Antonio
de Castro Mayer (1904-1991), que deu grande apoio à instalação do Mosteiro
da Santa Cruz. Dentro do panorama atual da Igreja, o
grupo de Friburgo é visto como uma cisão entre os próprios tradicionalistas.
A maioria desses religiosos tem se composto
politicamente com a Santa Sé. Não são incomodados, desde
que não questionem a autoridade eclesiástica ou papal. É justamente
nesse ponto que o grupo de Nova Friburgo se diferencia dos demais. “O que tem acontecido ali é como uma ferida
para a Igreja. E ninguém sabe lidar com o problema que eles estão criando”,
diz um padre muito influente entre as ordens religiosas do Rio. Os planos dos padres revoltosos são
ambiciosos. Williamson já criou um outro grupo no ano passado, batizado de União Sacerdotal Marcel Lefebvre. Ele e
seus companheiros pretendem ordenar em breve mais dois bispos para disseminar
seu descontentamento com o papado liberal de Francisco. O francês Faure, cheio de orgulho, tem até apelido para o racha: La Résistance.
A súbita notoriedade
do Mosteiro da Santa Cruz tem incomodado profundamente o
bispo diocesano de Nova Friburgo, dom Edney Gouvêa Mattoso. No dia seguinte à
consagração clandestina conduzida por Williamson, dom Edney escreveu uma carta
ao sumo pontífice. O documento foi entregue ao núncio apostólico do Vaticano no
Brasil, dom Giovanni D’Aniello. Além de reclamar com o papa, o bispo pediu a
seu rebanho para ficar longe do território dos rebeldes. “Cabe-me exortar todos os fiéis católicos a cumprir o grave dever de
permanecer unidos ao papa na Igreja Católica, e de não apoiar de modo algum
essa ilegítima ordenação episcopal e as consequências que dela advirão”, alertou
em uma nota oficial. Entre os fiéis da cidade, comenta-se que dom Edney anda “cuspindo marimbondos” e até prometeu
excomungar quem se aproximar do mosteiro. Os bastidores
da batalha entre o bispo e os revoltosos, aliás, são dignos de filme.
A cúria friburguense
chegou a plantar um espião entre os inimigos, com a missão de saber todos os detalhes da vida cotidiana, das festas religiosas e até o que
se fala nas cerimônias. Há cerca de dois anos, dom Edney tentou se
aproximar de dom Tomás, que sempre recebeu muitos hóspedes do exterior em seu
mosteiro. Foi pessoalmente visitar o desafeto, mas o encontro não durou nem
dois minutos. “Beijei o anel dele, mas
nossos caminhos são tão diferentes que o relacionamento é nulo”, explica
dom Tomás, entre irônico e sarcástico. Dom
Edney não quis falar com a reportagem. Também procurados, calaram-se a respeito do assunto a
Nunciatura Apostólica, em Brasília, a Conferência
Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e a Arquidiocese do Rio de Janeiro.
Fonte: Veja Rio
http://vejario.abril.com.br/materia/cidade/catolicos-questionam-a-santa-se-em-nova-friburgo