Alinhamento será posto em xeque em caso de ação militar
Quando o general brasileiro Alcides Faria Jr., hoje num comando de
brigada em Ponta Grossa (PR), desembarcar no Forte San Houston, em San
Antonio, no Texas, no fim de abril, para assumir suas funções de
subcomandante das Forças Armadas americanas, já terão se esgotado todos
os prazos dados pelos Estados Unidos para que a Venezuela aceite a
remessa de alimentos e remédios enviada ao país.
Comida num país que passa fome, é comandado por um ditador e tem um
governo paralelo é um ativo evidente nas mãos de quem esteja disposto
derrubar o poder constituído. Como as autoridades americanas já
determinaram que a questão não é se a Venezuela vai ou não aceitar mas
quando, uma ação militar revestida de ajuda humanitária é um desfecho
real. O cenário abre uma lista de dúvidas frente às quais o Congresso Nacional
não teve a possibilidade de se confrontar porque não foi consultado e,
ao contrário do americano, nem mesmo informado. Se o Pentágono enviar a
ordem para o Forte San Houston, o que deverá fazer o general brasileiro?
Interromperá a cadeia de comando que passou a integrar ou cumprirá as
diretrizes da ação militar do Pentágono? Uma pista é saber quem pagará
seu salário, mas não há nem mesmo um acordo público, ou designação já
publicada no Diário Oficial, para saber se a tarefa caberá ao governo
brasileiro ou americano.
Pelo prazo em que foi anunciado o engajamento do general, no 37º dia do
governo Jair Bolsonaro, é provável que o convite e seu aceite tenham se
dado na gestão Michel Temer. Não há registro que a cooperação tenha
nascido no Ministério da Defesa onde se teme que um engajamento militar
do Brasil na Venezuela aumente a pressão de refugiados em Roraima e
exponha a inferioridade bélica nacional. Em 29 de setembro de 2015, um
tanque blindado de mais de 50 toneladas que saíra de Campo Grande e
atravessara a Amazônia, fez disparos na Serra do Tucano, próximo a Boa
Vista. Exibido para o vizinho ao Norte, armado de submarinos, baterias
de defesa antiaérea e caças Sukhoi, foi um ensaio de teatro amador.
Para convencer os senadores americanos de sua proposta orçamentária, o
almirante americano discorreu sobre as ameaças de o Exército Islâmico
vir a estabelecer vinculações com narcotraficantes latino-americanos. No
governo passado, quem mais deu asas a esta tese foi o ex-ministro do
gabinete de Segurança Institucional, o general Sérgio Etchegoyen.
Uma visita ao Livro Branco da Defesa Nacional, aprovado há apenas sete
anos pelo Congresso Nacional, não poderia ser mais claro sobre as razões
pelas quais o Brasil se mantém há 140 anos em paz com seus vizinhos. O
país deve se empenhar pela multipolaridade de uma comunidade global
participativa e inclusiva e atuar, no entorno sul-americano, contra
posturas conflituosas e excludentes. O texto não poderia ter sido mais confrontado pelo depoimento do
almirante em que foi anunciada a inédita adesão do general brasileiro ao
comando do Texas. Craig Faller quer inimigos que temam os Estados
Unidos. Os três maiores que citou, Rússia, China e Irã, são os mesmos
que lideram as transações de petróleo por moedas alternativas ao dólar.
Como o depoimento se destinava a justificar a demanda orçamentária do
Pentágono para 2020, tratava-se ali de mostrar por que está em jogo, na
região, um capítulo do cerco eurasiano que ponha em xeque a moeda do
país no seu quintal. Se China e Rússia operam para aumentar esse cerco
aos EUA via Venezuela, como mostra o jornalista brasileiro mais
enfronhado no tema, Pepe Escobar, no Asia Times, não se deveria esperar
outra coisa da Defesa americana senão uma reação. A pergunta que se faz é por que o Brasil deveria ser sócio desta
aventura. A barreira que se ergue na Ásia, na África e no Oriente Médio a
uma ação militar na Venezuela congrega alguns dos maiores parceiros
comerciais e diplomáticos brasileiros. O engajamento na ofensiva
confronta os interesses comerciais brasileiros e contraria alguns dos
mais estabelecidos princípios da doutrina diplomática e militar do país.
Dá asas à ameaça de as grandes potências mundiais balcanizarem a
América Latina disputando aliados e jogando uns contra os outros.
Até aqui, as pretensões de alinhamento do governo Jair Bolsonaro com os
Estados Unidos foram lideradas pelo chanceler Ernesto Araújo, que
recebeu o almirante Faller no Palácio do Itamaraty três dias depois de
sua exposição aos senadores americanos do feito de engajar o Brasil à
sua tropa de comando. As Forças Armadas, a despeito dos sinais de
arrefecido nacionalismo, patente na abertura à venda da Embraer, por
exemplo, ainda se mantinham como um anteparo às trampolinagens do
chanceler.
Todos os militares da ativa e da reserva que hoje ocupam postos de
comando no governo Bolsonaro foram alunos aplicados das doutrinas da
defesa nacional mas a era Jair Bolsonaro no poder liberou os instintos
mais primitivos. Tem comandante que faz curso nos Estados Unidos e volta
com um minibroche da bandeira americana na farda. E outro que toma
posse exaltando a parceria com os Estados Unidos em "três guerras", a 1ª
Guerra Mundial, a 2ª, e a guerra fria.
A formalização da ida do general para o Texas demonstra que se o
alinhamento não nasceu na Defesa já não encontra entre os militares a
mesma resistência. Parece uma eternidade, mas há menos de cinco anos,
generais brasileiros ainda recusavam convites de escolas militares.
Preferiam repassá-los a civis a ver seus oficiais disputando lugar nas
filas de latino-americanos fardados a esperar o ticket-alimentação das
escolas.
A Guerra da Coreia, nos anos 50, costuma ser citada como o momento mais
próximo de um engajamento brasileiro numa empreitada bélica americana,
excluindo-se, por óbvio, os grandes conflitos mundiais. A ofensiva,
feita entre os governos Eurico Gaspar Dutra e Getúlio Vargas, resultou
numa mobilização espraiada por passeatas, comícios, enterros simbólicos.
Entre a resistência brasileira e a pressão americana, Getúlio ficou com
o povo. Para que o exemplo histórico influencie Jair Bolsonaro vale até
manter em segredo que a liderança da resistência foi do Partido
Comunista.
Maria Cristina Fernandes - Valor Econômico