A
proposta em avaliação no Congresso é equilibrada e, se aprovada, representará um avanço para o país,
as empresas e os empregos
Há
mais ou menos 150 anos, começou a tomar forma uma novidade no capitalismo: a empresa como a conhecemos. Os mercados se tornavam mais
complexos, e quem quisesse trabalhar de forma mais eficiente não poderia mais
improvisar todos os dias.
Comprar insumos, armazená-los, trabalhar em
equipe, estocar a produção, vender e entregar demandava planejamento e coordenação.
A empresa foi uma solução para reduzir os custos de prestar serviços ou de
produzir qualquer coisa. Ela trouxe para baixo do mesmo teto todas as operações
que antes, com custos altos e ineficiências, eram contratadas fora. Adotou a estrutura hierárquica, com cadeias de comando e
processos burocráticos de controle. Quanto maior, mais níveis
hierárquicos e mais burocráticos os processos. As empresas – e, principalmente, as grandes corporações em
que muitas delas se transformaram – reduziram as incertezas e os custos
para produzir e vender. Assim, impulsionaram o capitalismo e permitiram que os
empreendedores atendessem às necessidades e aos desejos de consumo da
sociedade. A lógica desse modelo era trazer tudo para
dentro e fazer tudo em casa, para evitar a confusão de comprar tudo fora.
Dentro da empresa, ficava mais fácil coordenar e controlar. Mas a história não
para.
A
empresa era uma cadeia produtiva completa e crescia adquirindo outras e abrindo novas frentes
de produção. Verticalizava-se e se diversificava.
Surgiram as instituições do mercado de trabalho. A empresa, que
precisava de um quadro de empregados permanentes e comprometidos, criou
políticas de recursos humanos compatíveis com essa necessidade. Os sindicatos
emergiram e passaram a organizar, representar e alcançar conquistas para os
trabalhadores. O Estado fez sua parte formulando e implantando políticas
públicas de proteção e regulamentou o mercado de trabalho. O Direito do
Trabalho se desenvolveu também a partir das relações de trabalho contínuas,
típicas da empresa capitalista.
As
inovações tecnológicas dos últimos 50 anos criaram as condições para alterações
radicais nas formas de organizar e coordenar a produção. O
computador, a internet e a logística avançada permitem hoje que uma
empresa se organize com um núcleo enxuto que planeja e coordena cadeias
produtivas à distância e até globalmente. No setor de serviços, que é hoje o
carro-chefe das economias no mundo, esse formato é mais evidente e mais
frequentemente adotado. Não é mais preciso trazer tudo para dentro, porque
ficou acessível e viável comprar fora e fazer fora. A empresa vertical está
sendo substituída pela rede horizontal de produção. As organizações
hierárquicas e burocráticas não são mais funcionais e deixaram de ser competitivas.
Não conseguem acompanhar o ritmo das novas redes produtivas.
Evidentemente,
a transformação na organização da produção tem repercutido nas relações
trabalhistas. O emprego tradicional tem sido
substituído pela terceirização e por outras formas de contratação de trabalho, mais
adequadas ao formato atual da empresa competitiva. Para acompanhar a
transformação nas relações de trabalho, as empresas precisam reformular suas
políticas de RH, os sindicatos precisam se reinventar, o Direito do Trabalho
precisa se reciclar e o Estado precisa adequar as políticas do mercado de
trabalho e as políticas de proteção. Todas essas instituições foram formadas a
partir do vínculo de emprego contínuo e direto. Agora, com as novas formas de
contratação, as instituições terão de se adaptar.
A
legislação trabalhista do Brasil, criada por Getúlio Vargas, nos anos 30-40 do século passado, está ultrapassada. Foi elaborada
para proteger o trabalhador da empresa antiga. Não foi feita para o mundo de
hoje. Nossos legisladores se omitiram até agora e deixaram um vácuo legal
ao não regulamentar a terceirização. O
único dispositivo que trata do tema é a Súmula 331 do Tribunal Superior do
Trabalho (TST), que permite a terceirização nas “atividades-meio”, mas a proíbe nas “atividades-fim”. Dois exemplos podem ajudar a entender a
lógica – ou a falta dela – na Súmula.
O primeiro seria uma escola. De acordo com o TST, ela pode
terceirizar a cantina, a limpeza, a segurança e o transporte – as atividades-meio, de apoio. Mas
não pode terceirizar a aula, porque o ensino é sua atividade-fim. Neste
caso, é possível separar com clareza as duas categorias de atividade. Mas um segundo exemplo mostra que nem
sempre a distinção é tão simples. O caso agora seria uma fábrica de
celulose que tem também uma plantação de eucaliptos. Se a empresa decidir
terceirizar a extração da madeira (o
corte das árvores e seu transporte até a fábrica), será multada pela
inspeção de trabalho. Se recorrer, será condenada pelo TST, porque, para os nossos juízes, a extração de
madeira é atividade-fim da fábrica de celulose. O exemplo não é um cenário
hipotético. Há diversos casos de fabricantes de celulose condenados no TST por
terceirizarem a extração da matéria-prima que usam. A Súmula 331 proíbe nossas empresas de evoluir e se transformar em
redes produtivas. Condena-as a permanecer no século XX, verticalizadas e
não competitivas.
As
empresas que se arriscam na terceirização ficam na dependência de um inspetor do trabalho ou de um juiz decidir se a atividade
terceirizada é ou não uma atividade-fim. A falta de bases legais seguras
para a terceirização impede a modernização das empresas brasileiras e,
portanto, reduz a competitividade da nossa economia. Uma companhia tem de se
tornar mais competitiva para conseguir crescer, disputar novos mercados e ter
chance de criar mais e melhores postos de trabalho. Regulamentar a
terceirização é uma necessidade estratégica para o Brasil.
AS
RAZÕES DA RESISTÊNCIA
Se assim é, por que tanta resistência à
regulamentação? Quais os argumentos? Quem se opõe e por quê?
O argumento
principal é a tese de que a terceirização transformaria o mercado de
trabalho em uma selva. As empresas despediriam seus
empregados e terceirizariam todas as atividades, o que “precarizaria” as
condições de trabalho e reduziria salários e benefícios. O argumento é exagerado. Voltemos ao primeiro exemplo: dificilmente
uma escola séria terceirizaria suas salas de aula. Deve existir uma demanda
reprimida de terceirização que ficaria visível com a regulamentação, pois as
empresas se sentiriam mais seguras para adotar as novas estratégias de
negócios. Mas isso não traria a lei das selvas ao mercado de trabalho. O
projeto em votação na Câmara dos Deputados é bastante equilibrado e contém
mecanismos e salvaguardas que limitarão o uso da terceirização às situações em
que aumentará a eficiência sem prejudicar os trabalhadores terceirizados.
A tese da
“precarização” parece ser uma cortina
de fumaça que esconde outras motivações. A terceirização cria um conflito de representação:
quem representaria os terceirizados,
o sindicato dos trabalhadores da empresa principal ou o
das terceirizadas? O conflito entre as correntes sindicais tem sido
pouco explicitado, mas na verdade é uma das razões principais que retardaram a
regulamentação da matéria. Os sindicatos das categorias
principais gostariam de assumir a representação dos terceirizados.
As
entidades empresariais gostariam que a representação ficasse com os sindicatos
dos terceirizados – normalmente menos poderosos. O projeto em apreciação no Congresso parece
ter resolvido essa questão: quando a atividade terceirizada for relacionada
à atividade principal da empresa, o sindicato principal representará os
terceirizados. Quando não for relacionada, o sindicato dos terceirizados será o
representante. O melhor teria sido deixar essa decisão para os próprios
trabalhadores, mas, aparentemente, nenhum dos dois lados aceitaria essa
solução. De qualquer forma, o texto parece ter encontrado um caminho e superou
o impasse que retardava o avanço da matéria.
Por: Hélio Zylberstajn – Revista Época