O governo afunda sozinho na areia movediça sobre a qual apoiou seu edifício
O Floriano Peixoto de ontem, marechal de ferro, armas na mão, salvou a
República da reação oligárquica. O de hoje, um comandante testado no
terremoto do Haiti, integra-se ao círculo de aço de militares
encarregados de salvar o governo do caos engendrado pelo próprio
presidente. A substituição de Bebianno converte Onyx Lorenzoni no único
civil remanescente no núcleo de ministros que despacham do Planalto.
Junto dele, figuram três generais: Augusto Heleno, chefe do GSI, Santos
Cruz, na Secretaria de Governo, e Floriano, na Secretaria-Geral. De
fato, um mês e meio após a posse, assistimos ao ensaio da inauguração de
um segundo governo Bolsonaro.
A demissão de Bebianno pode ser narrada em dois registros alternativos.
Na linguagem do recreio do pré-primário: um chamou o outro de mentiroso,
feio e bobo. No idioma compartilhado entre milicianos e facções do
crime: um qualificou o outro como traíra, X-9. De um modo ou de outro, o
evento veicula uma lição de ciência política: o governo Bolsonaro, na
sua versão original, é um experimento patológico destinado a perecer sob
o efeito das toxinas empregadas na sua concepção. Os militares
finalmente entenderam isso. Nos idos de 2016, ano do impeachment de Dilma Rousseff, a cúpula militar
encarava Bolsonaro com indisfarçável desprezo. O ex-capitão baderneiro
cercava-se por constelações de extremistas de redes sociais que gritavam
pela "intervenção militar", ameaçando poluir os quartéis com os gases
da política golpista.
Dali, numa brusca oscilação, os chefes fardados entusiasmaram-se com uma
candidatura que prometia recuperar a estabilidade econômica, exterminar
a corrupção e destruir as cidadelas do crime organizado. A velha
desconfiança dos políticos profissionais, os ressentimentos nutridos
pelas comendas oficiais concedidas a Marighella e Lamarca, o sonho
desvairado de restauração da imagem da ditadura militar contribuíram
para o imprudente abraço dos militares ao candidato da direita
populista.
Do desprezo ao entusiasmo —e deste ao pânico. O clã familiar dos
Bolsonaro, permeado por loucas ambições, inclina-se à guerra palaciana
permanente. As cliques do baixo clero parlamentar que rodeiam Lorenzoni e
Bebianno prometem engolfar o governo em perenes disputas mesquinhas. Os
dois ministros nomeados por Olavo de Carvalho, o Bruxo da Virginia,
personagens atormentados por moinhos de vento puramente imaginários,
fabricam crises fúteis em série. Segundo o diagnóstico dos chefes
militares, o governo afunda sozinho na areia movediça sobre a qual
apoiou seu edifício improvisado.
Você disse "fascismo"? Sentenças odientas pontilham discursos das
autoridades. Um projeto de lei assinado por Moro concede às polícias uma
licença irrestrita para matar. No Rio de Janeiro, sob o influxo do
"espírito do tempo", noticia-se uma chacina policial no Morro do Fallet e
tiros fatais de snipers na favela de Manguinhos. Mas só há "fascismo"
na literatura vulgar de uma esquerda que tudo esqueceu ou nada leu. [as ações criticadas, gratuitamente, neste parágrafo representam os melhores do governo Bolsonaro - outros, com certeza virão.
As ações criticadas livraram a sociedade de alguns - poucos, ainda - bandidos.] O
governo Bolsonaro, tal como exposto pelo episódio constrangedor da
demissão de Bebianno, carece de coesão organizativa, estrutura
político-partidária e coerência ideológica mínima.
"Fascismo"? Bolsonaro não mobiliza camisas-negras ou falanges, exceto a
militância virtual comandada pelo filho Carluxo que vitupera nos
subterrâneos da internet. Um paralelo viável não é com Mussolini, mas
com Rodrigo Duterte, o populista primitivo das Filipinas que contaminou
suas forças policiais com as práticas do vigilantismo. No Brasil, um
governo desse tipo está condenado à implosão. Daí, o alerta de pânico
ativado pelos generais do Planalto.
A defenestração de Bebianno assinala uma transição silenciosa. Que
ninguém se iluda: está em curso a "intervenção militar" pela qual
clamavam os patetas civis extremistas na hora do impeachment. [o 'impeachment' foi necessário e deveria ter ocorrido já na primeira eleição do marginal Lula - para tanto o correto teria sido a criação dos mecanismos necessários.
O governo Bolsonaro tem potencial para ser excelente; apenas algumas falhas, em sua maioria de 'modus operandi' e sempre maximizadas nos aspectos negativos por parte da Imprensa, estão causando uma má impressão.
Mas, há tempo para as correções e a presença militar é sempre necessária e bem-vinda - é notório que nenhum dos militares presente no primeiro escalão do atual governo é alvo de qualquer tipo de acusação.]
Demétrio Magnoli - Folha de S. Paulo