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domingo, 29 de abril de 2018

Alguns dos piores riscos que rondam o Brasil

Quase toda semana alguma revista ou jornal do Primeiro Mundo publica reflexões sobre o fim da democracia representativa. Subestimar tais alertas seria tolice, mas permito-me lembrar que eles têm sido feitos desde as primeiras décadas do século 20.

O que não vejo nessas matérias é a indispensável distinção entre democracia e Estado. Democracia é software, Estado é hardware. Ou seja, o termo Estado refere-se à parte fixa, ou, melhor dizendo, à ossatura burocrática que assegura a estabilidade e a regularidade de funcionamento de toda sociedade. Mal comparando, é o esqueleto, a estrutura óssea que sustenta um ser vivo. Mas o que lhe incute a vida é o processo político. 

Esse é o “programa” que manda a máquina operar no cumprimento de tais ou quais objetivos. O eventual colapso da democracia leva a uma ditadura, o do Estado, a uma situação de anarquia ou desordem generalizada.

No presente momento brasileiro, quase não há ameaças diretas ao regime democrático, pois praticamente todas as forças políticas querem trabalhar dentro dele para tentar atingir seus objetivos particulares. Mas ameaças ao Estado não faltam, e esse é o perigo. Penso ser útil mencionar três tipos de ameaça. A primeira e mais grave é o fato de altas autoridades institucionais se comportarem em flagrante desacordo com suas atribuições. O melhor exemplo é o STF, que em tese é o guardião da ordem constitucional, mas onde diversos ministros parecem mais empenhados em descumpri-la que em mantê-la incólume. Não é segredo para ninguém que alguns ministros trabalham diuturnamente para abortar o combate à corrupção.

O segundo fator é o aumento exponencial da criminalidade violenta, notadamente no nordeste e no Norte, processo estreitamente associado ao narcotráfico, que há tempos controla pontos importantes do território nacional. Por último, mas não menos importante, é o descalabro econômico a que fomos arrastados pelos governos Lula e Dilma. Um Estado deixa praticamente de ser um Estado quando carece de recursos para fazer face aos gastos correntes e à remuneração dos empréstimos que é obrigado a fazer para manter a máquina em andamento. O prognóstico atual é o de que reaveremos essa capacidade em 2021, se não fizermos novas asneiras.

Bolívar Laumonier - IstoÉ

terça-feira, 21 de abril de 2015

"Gente na rua é poder?"

Vigora no imaginário coletivo brasileiro a ideia de que gente na rua é poder. Se uma causa conseguir levar as pessoas à rua, tal causa sairá vencedora. Afinal, não foi isso o que se pensou nas Diretas-Já? Não foi isso o que ocorreu no impeachment de Collor?
Mas a ideia de que o povo na rua consegue o que quer nem sempre corresponde aos fatos, embora se fundamente no pressuposto de que, numa democracia, o poder está nas mãos do povo.

Também essa afirmação precisa ser matizada. Não estamos numa anarquia, onde quem grita mais forte e reúne o grupo mais ruidoso vence. Numa democracia representativa, o poder de arregimentar não é sinônimo perfeito de poder político. O povo tem o poder em suas mãos quando vota. Depois, ele é transferido temporariamente aos seus representantes.

Mas, então, qual é o poder do povo nas ruas? Obviamente, ele exerce influência, tem poder. Mas tal poder é exercido de forma indireta. A atuação nas ruas é vitoriosa apenas quando consegue modificar os cálculos políticos de quem detém o poder. Por exemplo, não basta que a maioria da população diga que Dilma Rousseff merece o impeachment. As pessoas que detêm o poder de interromper o mandato da presidente - no caso, os parlamentares - precisam se convencer da realidade prática de que, sem Dilma, as coisas ficarão melhores. Dizer simplesmente que, com Dilma, as coisas estão ruins não tem, por si só, força política.

Estar na rua não basta para mudar destinos políticos. Tornou-se hábito, por exemplo, falar que o regime militar acabou porque o povo foi às ruas. A ideia é bonita. Mas, analisados os fatos, fica evidente que o regime militar acabou, no momento em que acabou, por uma decisão política dos próprios militares. A versão de que o povo nas ruas alterou significativamente a história é uma construção teórica posterior. Muito bonita, repita-se, mas falsa. Alguns dirão: mesmo que não seja de todo verdade, essa construção ressalta a importância da participação popular nos acontecimentos históricos. Mas a democracia se constrói à base de fatos reais e argumentos consistentes, e não de meras idealizações. Criar mitos que falseiam a realidade não leva as pessoas a ter influência prática na vida pública, que é o que importa numa democracia.

Reconhecer que o povo nas ruas não tem o poder que se imagina não significa retirar a legitimidade das manifestações nas ruas. Ao contrário. Ir às ruas é em si meritório, pois significa que cada um está dedicando o seu tempo a promover algo que considera benéfico para a sociedade. A questão está em fazer essa mobilização gerar efeitos práticos, políticos. Daí a importância de entender como funcionam os mecanismos de um regime democrático.

Também não significa que o sistema representativo seja perverso, como se o poder tivesse sido usurpado do povo por alguns poucos. Há apenas uma transferência temporária de poder a alguns representantes. Tal sistema - embora, imperfeito - traz importantes benefícios. Ele não é apenas uma solução prática diante da impossibilidade de que a população decida continuamente sobre as questões públicas. Oferece a possibilidade de um saudável distanciamento entre o poder decisório e o poder da maioria, ao fornecer as condições práticas para a tomada de decisões impopulares, mas absolutamente necessárias para a condução responsável de uma nação.  E aqui se desvela outro aspecto fundamental da democracia representativa - a responsabilidade pelas decisões, assegurada pelo caráter temporário da transferência de poder. Responsabilidade que não existe, por exemplo, nas manifestações de rua.

Todas essas questões sobre o exercício do poder podem parecer complicadas. Não precisa e não deve ser assim. Cada um do povo deve ser responsável por suas escolhas. Só assim os representantes assumirão a sua responsabilidade pelo bem comum, em sintonia com o sentir da população. São eles os responsáveis por traduzir no momento presente as aspirações da população em consequências práticas, nesse equilíbrio sempre instável da política, entre o desejável e o possível. A população está dizendo o que considera ser desejável - e essa é a sua força. Resta ver qual será a resposta daqueles que detêm o poder, tanto o governo como a oposição.

Fonte: Editorial - O Estado de São Paulo