"Fica difícil justificar que quem desviou, em última análise, o dinheiro suado dos pagadores de impostos tenha da justiça um tratamento complacente, enquanto sobra rigor para quem expressou pensamento e está preso sem condenação"
Nove anos depois do incêndio na Boate Kiss, o caso foi julgado em Porto Alegre.
Apenas quatro pessoas foram responsabilizadas por 242 homicídios e 636
tentativas de homicídio. Ao cabo de 10 dias, os proprietários foram
condenados a 22 e a 19 anos e o vocalista da banda e um auxiliar, a 18
anos cada.
A acusação os denunciara por dolo eventual com fogo, asfixia e
torpeza. Depois, foram suprimidas essas qualificadoras e subsistiu
homicídio simples. A defesa leu carta "psicografada" por um morto; o
juiz proferiu uma sentença em linguagem dramática e estranha e o
julgamento terminou deixando a impressão de que ficou faltando réu.
Afinal, a boate estava forrada com material inflamável com potencial de
fumaça tóxica; não havia extintor funcionando nem saída de emergência
para evacuar sua capacidade de 2 mil pessoas. Mas a boate estava
credenciada por alvará oficial, o que significa ter sido inspecionada
pela autoridade competente. O Estado, autor da ação penal, deve ter
concorrido para a tragédia.
Os condenados não ficaram presos, pois houve recurso,
derrubado ontem pelo Ministro Fux. Coincidentemente, durante esses 10
dias, um réu de quase 400 anos teve sua pena diminuída de 14 anos,
Sérgio Cabral. Faltam 385 anos, mas o TRF-2 revogou a prisão preventiva e
concedeu-lhe prisão domiciliar. Presente de Natal.
Também nesses 10
dias o processo do triplex de Guarujá prescreveu, e com ele a condenação
de Lula na Vara de Curitiba, confirmada no tribunal revisor, mas
anulada pelo Supremo por questão de jurisdição [é a já famosa justificativa: o réu sentou na "vara errada"; o caso do Lula é ainda mais gritante, já que no popular ele pelo processo A, sentou na vara C, quando a vara certa era a D, e pelo processo B, sentou na vara D, sendo que a correta era a C = uma sentada errada em uma vara foi compensada por outra sentada, também errada, em outra vara. Se o furor de soltar bandido não fosse tão presente, era só compensar uma sentada pela outra e manter o bandido preso pela diferença = foi mais cômodo descondená-lo nos dois processos.] — a mesma razão que
propiciou desconto de pena para Cabral.
Lula já teve 26 anos de pena
anulados; Eduardo Cunha, menos 38 anos.
Num desses 10 dias o STJ mandou
para o Tribunal Eleitoral 15 condenados, entre eles Palocci, João
Vaccari, Marcelo Odebrecht, João Santana, porque concluiu que 200
milhões de propinas da Odebrecht eram apenas caixa 2 de campanha.
Segundo o Estadão, um total de 277 anos de penas já foi anulado — a
maior parte relativa à Lava Jato. A maciça maioria dos que foram presos
já está em liberdade.
O triplex agora vai ser sorteado pela pessoa que o
arrematou em leilão. Outros itens serão sorteados entre os que entrarem,
por R$ 19,99, numa plataforma da internet. Mas… se já está prescrito o
processo e Lula voltar a dizer que é dele?
E se o pessoal que se livrou
da Lava-Jato, e já devolveu o que depositou na Suíça, pedir o dinheiro
de volta?
Afinal, o TRF-2 acaba de desbloquear os bens de Lobão e Jucá.
E
se os proprietários da Boate Kiss alegarem que foram vítimas da
confiança gerada por um alvará que atestava segurança para eventos e
processarem o Estado?
Isso dá ideia do que chamamos no Brasil de
segurança jurídica.[a SEGURANÇA JURÍDICA que temos no Brasil, nos garante o seguinte: todos que acionarem o Estado receberão de volta o que devolveram ou lhes foi confiscado, acrescido de juros compensatórios e outras compensações.
Afinal, se um descondenado ou inocentado devolveu ou teve confiscado um bem (na ocasião produto de furto) e agora é descondenado ou inocentado o bem deixou de ser produto de furto = eufemismo para corrupção. ]
Nesses mesmos 10 dias, por crime de opinião, e ao
contrário de Sérgio Cabral, Zé Trovão foi confirmado em prisão
preventiva, para não açular os ânimos dos manifestantes de 7 de setembro
que passou.
Também com preventiva, o deputado Daniel Silveira, que,
talvez no 13 de dezembro, tentaria ressuscitar o AI5?
Além disso, a PGR
sugeriu manter Roberto Jefferson preso, pois fanfarronice virou crime.
Tudo irônico e absurdo.
Fica difícil justificar que quem desviou, em
última análise, o dinheiro suado dos pagadores de impostos tenha da
Justiça um tratamento complacente, enquanto sobra rigor para quem
expressou pensamento e está preso sem condenação, enquanto condenados
estão em liberdade pelo trânsito em julgado. [o mais grave é que a Constituição proíbe penas de caráter perpétuo, só que as altas instâncias do Poder Judiciário, adaptaram a legislação e passamos a ter a prisão perpétua à brasileira = o individuo é preso preventivamente e não se sabe quando, e se, será libertado = prisão com características de perpétua.]
A Justiça deveria ser
veneradora de sua deusa Thêmis; não cenário de O Processo de Kafka.
Alexandre Garcia, colunista - Correio Braziliense