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sábado, 28 de outubro de 2023

O lar brasileiro de hoje está pior do que no tempo da escravidão - Bruna Frascolla

Vozes - Gazeta do Povo

A concepção de humanidade com a qual o Brasil foi formado fez dele um lugar melhor.

A concepção de humanidade com a qual o Brasil foi formado fez dele um lugar melhor.| Foto: Victor Meirelles/Domínio público 

Em seu As sinhás pretas da Bahia: Suas escravas, suas joias (Topbooks, 2021), Risério desfaz muitos mitos das historiografias oficiais do Brasil. Um deles, ao qual se dá pouca atenção, é relativo ao casamento de escravos. Cito-o: “Até à década de 1970, à maneira de Florestan Fernandes, nossos historiadores e sociólogos consideravam impensável a ideia de que escravos tivessem formado unidades familiares estáveis e duradouras em nosso país. Hoje, reconhece-se que eles foram capazes não só de estabelecer a família nuclear como de articular a chamada 'família extensa'. Filhos e filhas de negros escravizados chegaram muitas vezes a nascer e crescer sob os olhares conjuntos do pai e da mãe. 
Para trazer à luz um só aspecto, escravos que se casavam, sob a bênção da Igreja Católica, deixavam o ambiente promíscuo da senzala e passavam a ter um canto só para eles, marido e mulher, acompanhados somente pelos filhos, no crescimento da família conjugal” (p. 93).
 
Ou seja, a narrativa segundo a qual a escravidão impedia os negros de formarem família é a enésima importação indevida da realidade norte-americana para analisar o Brasil. 
Nos EUA, sim, as famílias dos negros eram desmembradas à medida que o proprietário ia vendendo os escravos. 
Nos EUA, a alforria era fenômeno raríssimo, e um racismo de origem religiosa, profundamente arraigado, vedava aos negros quaisquer possibilidades de ascensão social por meio da integração.
 
A diferença entre nós e eles tem origem teológica. A Igreja Católica leva a sério a afirmação de que o homem, sem predicações raciais ou étnicas, é feito à imagem e semelhança de Deus.  
A diferença entre um índio canibal, um escravo africano e um português era que os dois primeiros ainda não receberam a boa nova e ainda não foram batizados. 
Uma vez batizados, todos eram igualmente filhos de Deus.
 
A racialização do cristianismo, ao menos na modernidade, começa com Lutero, que considerava os espanhóis indiscerníveis dos mouros, turcos e judeus
Lutero, como se sabe, era um tremendo antissemita no sentido literal do termo: odiava a descendência de Sem, que incluía árabes e judeus. 
A Península Ibérica, a seu turno, tinha muito sangue semita graças ao período que permaneceu sob o Califado Omíada.

    As crianças do mundo liberal vão se parecendo cada vez mais com as crianças da Romênia comunista, que foram largadas em orfanatos estatais depois de os dirigentes resolverem aumentar a natalidade a qualquer custo

Com o calvinismo, porém, inicia-se (e aprofunda-se) uma racialização em sentido oposto: com a doutrina da predestinação, Deus tem dentre os homens uns poucos eleitos. 
Reaviva-se, assim, a ideia primitiva e anti-universalista do judaísmo, segundo a qual Deus tem um único povo eleito, alguns filhos prediletos. Em Os judeus e a vida econômica, Werner Sombart considera que puritanismo é judaísmo (ao menos uma imitação), e recolhe evidências de que uma verdadeira adulação aos judeus surgiu na Inglaterra pouco após a chegada do séquito de sefarditas que acompanharam Catarina de Aragão. Menciona, por exemplo, que os levellers se referiam a si mesmos como judeus – coisa impensável tanto no mundo católico quanto no mundo luterano. 
E hoje vemos os descendentes dos puritanos na América bancando um Estado judeu como uma espécie de exclave sagrado no Oriente Médio.
 
O Destino Manifesto é outra emanação do calvinismo: Deus escolheu o povo que colonizou os EUA; e este tem direito a dominar o mundo. No mundo calvinista, o fiel pode dizer “nós, os eleitos”, e vós (resto do mundo), os rejeitados do Pai. 
É um convite à dominação do homem pelo homem e à desumanização do dominado. 
E isso se refletiu na história dos EUA, que mataram ou expulsaram do seu convívio todos os índios (que tinham, sob o México, uma boa relação), e consideraram os negros uma raça inferior, que deveria ou ser mantida escrava (segundo os sulistas escravocratas) ou deportada “de volta” para a África (segundo o Norte abolicionista).  
Com a vitória do Norte, criou-se a Libéria para deportar negros. Isso de deportar segundo a raça, como se vê, não foi invenção dos nazistas.
 
Apesar da difusão do ateísmo pelo ocidente pós-protestante, o espírito do calvinismo não morreu; em vez disso, tornou-se ainda mais materialista. Veja-se por exemplo o casal Collins, “que se identifica como calvinista secular, é particularmente atraído pelo princípio da predestinação, que sugere que certas pessoas são eleitas para serem superiores na Terra e que o livre arbítrio é uma ilusão. Acreditam que o pró-natalismo é uma consequência natural dos movimentos filosóficos que tomam o polos de tecnologia como as colinas de Silício em Austin, Texas.” Como vocês podem ler em português nesta Gazeta, o pró-natalismo do casal, e não só dele, se baseia na crença em QI.  
Desta maneira, pode-se até negar que se seja racista, já que existem negros com QI alto. 
Por outro lado, usa-se uma via secular para cultuar judeus do mesmo jeito, apontando-se o alto QI médio de judeus asquenazitas.
 
Mas o mais curioso, mesmo, é que (como apontei ano passado) essa crença na determinação do QI pela genética não se sustenta sequer cientificamente. 
Afinal, QI é uma junção de matéria (genética) e interação humana. 
Criar um ser humano não é a mesma coisa que preparar uma sopa Maggi. Os dados do QI de negros vêm dos EUA, onde tais famílias são especialmente desestruturadas. 
Por outro lado, as famílias asquenazitas são estruturadas. 
Resolver que a raça funda a diferença populacional é uma decisão arbitrária. 
Nos EUA, os negros foram submetidos a um exército de assistentes sociais voltados ao aborto e à dissolução da família; logo, era de esperar que o QI fosse mais baixo mesmo.

    Hoje, o que as Big Techs vêm consolidando é aquilo que na Idade Média se chamava de “comunismo de mulheres”: nenhum homem tem direito a uma mulher só sua, porque todas são socializadas

No século XXI, estamos, cada vez mais, virando aquilo que os negros eram nos Estados Unidos: os enjeitados de Deus, sob a opressão dos eleitos autoungidos. 
A queda de QI já é uma realidade generalizada e, até onde se saiba, inédita. 
E a explicação não é uma piora no stock racial; em vez disso, trata-se de redução das relações humanas na formação das crianças. 
As crianças do mundo liberal vão se parecendo cada vez mais com as crianças da Romênia comunista, que foram largadas em orfanatos estatais depois de os dirigentes resolverem aumentar a natalidade a qualquer custo.
 
Era mais fácil, portanto, um filho de escravos brasileiros casados esperar ter o pai em casa do que um filho das classes média e baixa de hoje
Agora deixemos as crianças e vejamos então o escravo negro adulto dos calvinistas: ele tinha direito a uma esposa? Não. 
A mulher tampouco tinha direito a um marido. 
Hoje, o que as Big Techs vêm consolidando é aquilo que na Idade Média se chamava de “comunismo de mulheres” (e que surgiu na Reforma protestante também, com João de Leyden): nenhum homem tem direito a uma mulher só sua, porque todas são socializadas. 
O resultado disso, num regime capitalista, é a prostituição universal
Para implementar isso, a propaganda progressista apelou para duas frentes: aos homens jovens, disse que seria muito bom ter uma porção de mulheres; às mulheres, disse que se não desejassem uma porção de homens, eram reprimidas e problemáticas. 
(Louise Perry abordou o assunto pouco tocado, que é a pílula ter deixado as namoradas sem um pretexto para dizer “não” sem magoar. As mulheres foram talhadas pela natureza para serem mais seletivas e, portanto, quererem menos parceiros sexuais do que os homens.)  
 
Acabar com a limitação do sexo ao âmbito do casamento foi relativamente fácil, com a pílula; e foi possível tocar a sociedade com famílias estruturadas assim. Primeiro os casais namoravam (com sexo), depois casavam. Mas o que estamos vendo agora é, também, o fim do namoro.  
Os rapazes são seduzidos pela ideia de que podem ver qualquer moça pelada por uma modesta quantia de dinheiro, e as moças são seduzidas pela ideia de que podem ganhar dinheiro fácil – e só uma problemática e reprimida não acharia ótima a ideia de ganhar dinheiro pelada com fotos descoladas.
 
O caso mais recente é o do viral “Beiçola do Onlyfans”: uma moça de Porto Alegre ficou famosa nas redes pelo marketing ousado, e o clube do bolinha não tardou em apelidá-la de “Beiçola do Onlyfans”, por sua pouca lisonjeira semelhança com o dono da pastelaria de A Grande Família. 
Ao cabo, a jovem Beiçola se encontrou com o ator que interpretava Beiçola e anunciou alguma doação para ele, passando assim a ser vista como boa moça e ganhando muita simpatia dos (outrora) haters. 
Em seguida, a plataforma na qual ela vende as fotos (uma tal de Privacy, não Onlyfans) anunciou que ela ganhou 500 mil reais com as fotos. 
Bom, ao menos no mundo anglófono, é sabido que o boom do Onlyfans, em 2020, se valeu muito da divulgação de valores inflados para convencer as mulheres de que se vender assim era bom negócio.
 
Pois então: uma escrava do Brasil colonial podia viver em paz sem sequer imaginar que milhares de homens deveriam vê-la pelada, ou que ela deveria querer transar com vários homens
Por outro lado, um escravo no Brasil colonial poderia ter para si, grátis, uma mulher que lhe desse atenção, e que não fosse dividida com nenhum outro homem.

Bruna Frascolla, doutora em filosofia - Gazeta do Povo - VOZES