O Globo
O vírus tem lado ideológico [e a imagem da esquerda revela ser ela imoral, hipócrita, oportunista e corporativista - aliás na esquerda só sobra falta de qualidade.]
A crise ensina. A emergência sanitária do coronavírus evidenciou o
negacionismo criminoso de Jair Bolsonaro, desmoralizando seu governo aos
olhos de todos que não sucumbiram ao fanatismo ideológico da extrema
direita. Contudo, de um modo menos óbvio, ela também lançou um
penetrante jato de luz sobre a esquerda, expondo suas vísceras. A imagem
resultante não é bonita.
Capítulo um: hipocrisia.
A esquerda ocupou a linha de frente do exército que clamava pela
imposição de lockdown. Na Itália, na Espanha e na França, rígidas
medidas de lockdown travaram o avanço dos contágios, circunscrevendo
regionalmente as epidemias. Lockdown não é, porém, um ato de pura
vontade. O congelamento geral da vida econômica e social exige uma
ditadura totalitária (China) ou a conjunção de dois fatores inexistentes
na paisagem brasileira: consenso político e coesão social.
Não se faz lockdown sob um governo central em campanha permanente contra
o distanciamento social. Não se faz lockdown com vastas parcelas das
populações metropolitanas carentes de renda e redes de proteção social,
que se concentram em cinturões periféricos e favelas desassistidas. A
esquerda que ignora essas realidades escolheu dialogar exclusivamente
com as classes médias.
Semanas atrás, deputados do PT de São Paulo recorreram, sem sucesso, aos
tribunais para impor ao governador Doria a execução de um lockdown. No
Rio, um clamor similar emanou de lideranças do PT e do PSOL. Um eventual
lockdown nas duas metrópoles demandaria massiva mobilização de forças
policiais nas periferias e favelas. As PMs patrulhariam as ruas onde
vivem os pobres e ocupariam favelas controladas por milícias e facções.
Os partidos de esquerda ofereceriam apoio às inevitáveis implicações
repressivas do lockdown?
Capítulo dois: oportunismo.
Quarentenas têm limites temporais, definidos pelo esgotamento da
resistência econômica e psicossocial da população. Nenhum país do mundo
manteve quarentenas por mais de três meses.
As reaberturas conduzidas
pelos governos estaduais não são exemplos de planejamento, eficiência ou
lógica.
A esquerda, porém, escolheu criticar as próprias reaberturas,
não suas inúmeras deficiências, aderindo a um iracundo fundamentalismo
epidemiológico. A finalidade é disputar as eleições municipais acusando
governadores e prefeitos de subordinar vidas a negócios.
Capítulo três: corporativismo.
As escolas estão, em geral, fechadas desde março. Na Europa, com exceção
de raros países, a reabertura escolar foi medida prioritária na etapa
de relaxamento das quarentenas. Os governos europeus concluíram que
crianças são fracos transmissores do vírus — e a experiência comprovou
que isso é verdade. Na França, de 40 mil escolas reabertas, surgiram
focos de infecção em meras 70. O Brasil, porém, enxerga o ensino público
como a mais dispensável das chamadas “atividades não essenciais” — e
cogita-se retomar aulas presenciais apenas nas calendas de setembro.
As crianças pobres carregarão para a vida adulta os prejuízos cognitivos
e de sociabilização causados pela interrupção escolar de sete meses.
Mesmo assim, sindicatos de professores dirigidos por lideranças de
esquerda resistem à reabertura em setembro, declarando-a “prematura” e
ensaiando movimentos grevistas. Médicos, enfermeiros, comerciários,
motoristas, operários e incontáveis outras categorias podem trabalhar
presencialmente durante a epidemia.
Professores, jamais, na opinião dos
sindicatos.
Capítulo quatro: duplicidade moral.
Lá atrás, as manifestações públicas da militância bolsonarista foram
qualificadas pela esquerda como atos criminais de difusão de contágios. A
esquerda criticou menos o conteúdo antidemocrático delas que a produção
de perigosas aglomerações. Há pouco, porém, setores da esquerda
voltaram às ruas, em protestos contra Bolsonaro. Nesse caso, as
aglomerações não geraram escândalo.
O vírus tem lado ideológico: as manifestações deles provocam infecções,
potencializam a epidemia, causam mortes em massa; as nossas são belas,
justas e higiênicas. A esquerda que emerge da Covid nada aprendeu.
Demétrio Magnoli, sociólogo - O Globo