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segunda-feira, 10 de agosto de 2020

Educação pública é bem supérfluo — eis o único consenso nacional

O Globo


A polarização política contaminou as discussões sobre a crise sanitária

 ‘Já enfrentávamos uma crise de ensino anterior à pandemia. Agora, estamos diante de uma catástrofe de toda uma geração que pode desperdiçar potencial humano e levar a décadas de atraso, exacerbando a desigualdade.’  António Guterres, secretário-geral da ONU, concluiu dizendo que a educação merece o qualificativo de atividade essencial: “Colocar os alunos de volta às escolas da forma mais segura possível precisa ser a maior prioridade”. No Brasil, porém, o debate sobre o tema foi virtualmente interditado.

As escolas particulares de Manaus reabriram há 35 dias, colocando 60 mil alunos em aulas presenciais. A cidade vive nítido declínio da transmissão do vírus, mas está longe de erradicar o contágio. A maioria dos modelos epidemiológicos e dos estudos em países que retomaram aulas revelam riscos muito baixos
Nada, porém, parece capaz de evitar que as redes públicas de ensino brasileiras sigam fechadas indefinidamente.

Um fator relevante é psicossocial: os pais temem por seus filhos. Quando adotados padrões sanitários e de testagem apropriados, é muito reduzida a probabilidade estatística de contágio entre professores e funcionários e, especialmente, de complicações sérias em crianças. Obviamente, o risco não é nulo — como, aliás, no caso de outras doenças contagiosas. E se meu filho for o ponto fora da curva?

O medo tem um contexto. A polarização política contaminou as discussões sobre a crise sanitária. O negacionismo bolsonarista provocou uma reação dogmática, que domina a imprensa e a parcela mais esclarecida da opinião pública: “Se Bolsonaro fala em abrir, exigimos fechar”. [ATENÇÃO: com as devidas vênias, discordamos que se trate de reação dogmática, movida por uma conduta do presidente Bolsonaro,que foi classificada como negacionismo.
É uma reação política,muito bem orquestrada, de grupos que simplesmente decidiram derrubar Bolsonaro e para a consecução do objetivo vale tudo que seja contra o presidente. 
Todos sabem que o governo federal não foi omisso no combate à pandemia - foi retirado do front.] No lugar do debate racional de custos e benefícios de cada restrição sanitária específica, as vozes indignadas com a criminosa negligência do governo federal refugiam-se no clamor genérico por lockdowns. Nesse passo, o pensamento supostamente progressista limita-se a reproduzir a cartilha bolsonarista — apenas virando-a pelo avesso.

Na prática, como quarentenas prolongadas são insustentáveis, o clamor só contribui para moldar o ritmo e as formas da reabertura inevitável. Os governos autorizam a retomada dos setores politicamente organizados, capazes de exercer pressão eficiente, como templos, escritórios, indústrias e shoppings. Escolas? As crianças não têm associações de classe — e não votam. A política, não a epidemiologia, decide a sorte de “toda uma geração” de brasileiros sem voz.

Fora do Brasil, há negacionistas de direita, como Trump, e de esquerda, como o sandinista nicaraguense Daniel Ortega e o nacionalista mexicano López Obrador. No Brasil, porém, a esquerda cavou sua trincheira no quadrante mais extremo do fundamentalismo epidemiológico. O medo elege: a bandeira da irredutível “defesa da vida” descortina caminhos oportunos para a denúncia geral de governadores e prefeitos que, ao longo do tempo, flexibilizam quarentenas. É nessa moldura que se inscreve a exigência da manutenção de escolas fechadas “até a vacina”, já explicitada pelo candidato do PT à prefeitura de São Paulo.

Os alunos não têm voz, mas os sindicatos de professores têm — e utilizam poderosos megafones para sabotar o mero debate sobre reabertura escolar. Manaus é mais um indício de que é possível reabrir escolas com segurança [favorecida pela imunidade de rebanho] nas cidades que descem a ladeira da curva pandêmica. Daí surge a palavra de ordem “Não antes da vacina!” — que, nas condições atuais, equivale a aguardar a descoberta do genuíno Santo Graal ou do mapa da Serra das Esmeraldas. Escolas, só depois da Segunda Vinda de Cristo, diriam os chefões sindicais, se empregassem a linguagem dos bispos.

Guterres não tem chance no Brasil. Bolsonaro, que fingiu decretar a reabertura de quase tudo, nunca falou em abrir escolas. Aqui, a elite segregou seus filhos em colégios-butique, cujas anuidades são mais bem expressas em dólar, os governos de esquerda jamais se importaram com a tragédia educacional retratada nas comparações internacionais do Pisa, e o governo da extrema direita entregou o MEC a um analfabeto funcional malcriado.
Educação pública é bem supérfluo — eis o único consenso nacional.

Demétrio Magnoli, colunista - O Globo



segunda-feira, 29 de junho de 2020

A esquerda no espelho da epidemia - Demétrio Magnoli

O Globo


O vírus tem lado ideológico [e a imagem da esquerda revela ser ela imoral, hipócrita, oportunista e corporativista - aliás na esquerda só sobra falta de qualidade.]
A crise ensina. A emergência sanitária do coronavírus evidenciou o negacionismo criminoso de Jair Bolsonaro, desmoralizando seu governo aos olhos de todos que não sucumbiram ao fanatismo ideológico da extrema direita. Contudo, de um modo menos óbvio, ela também lançou um penetrante jato de luz sobre a esquerda, expondo suas vísceras. A imagem resultante não é bonita.

Capítulo um: hipocrisia.
A esquerda ocupou a linha de frente do exército que clamava pela imposição de lockdown. Na Itália, na Espanha e na França, rígidas medidas de lockdown travaram o avanço dos contágios, circunscrevendo regionalmente as epidemias. Lockdown não é, porém, um ato de pura vontade. O congelamento geral da vida econômica e social exige uma ditadura totalitária (China) ou a conjunção de dois fatores inexistentes na paisagem brasileira: consenso político e coesão social.

Não se faz lockdown sob um governo central em campanha permanente contra o distanciamento social. Não se faz lockdown com vastas parcelas das populações metropolitanas carentes de renda e redes de proteção social, que se concentram em cinturões periféricos e favelas desassistidas. A esquerda que ignora essas realidades escolheu dialogar exclusivamente com as classes médias.

Semanas atrás, deputados do PT de São Paulo recorreram, sem sucesso, aos tribunais para impor ao governador Doria a execução de um lockdown. No Rio, um clamor similar emanou de lideranças do PT e do PSOL. Um eventual lockdown nas duas metrópoles demandaria massiva mobilização de forças policiais nas periferias e favelas. As PMs patrulhariam as ruas onde vivem os pobres e ocupariam favelas controladas por milícias e facções. Os partidos de esquerda ofereceriam apoio às inevitáveis implicações repressivas do lockdown?

Capítulo dois: oportunismo.
Quarentenas têm limites temporais, definidos pelo esgotamento da resistência econômica e psicossocial da população. Nenhum país do mundo manteve quarentenas por mais de três meses. 
As reaberturas conduzidas pelos governos estaduais não são exemplos de planejamento, eficiência ou lógica. 
A esquerda, porém, escolheu criticar as próprias reaberturas, não suas inúmeras deficiências, aderindo a um iracundo fundamentalismo epidemiológico. A finalidade é disputar as eleições municipais acusando governadores e prefeitos de subordinar vidas a negócios.

Capítulo três: corporativismo.
As escolas estão, em geral, fechadas desde março. Na Europa, com exceção de raros países, a reabertura escolar foi medida prioritária na etapa de relaxamento das quarentenas. Os governos europeus concluíram que crianças são fracos transmissores do vírus — e a experiência comprovou que isso é verdade. Na França, de 40 mil escolas reabertas, surgiram focos de infecção em meras 70. O Brasil, porém, enxerga o ensino público como a mais dispensável das chamadas “atividades não essenciais” — e cogita-se retomar aulas presenciais apenas nas calendas de setembro.

As crianças pobres carregarão para a vida adulta os prejuízos cognitivos e de sociabilização causados pela interrupção escolar de sete meses. Mesmo assim, sindicatos de professores dirigidos por lideranças de esquerda resistem à reabertura em setembro, declarando-a “prematura” e ensaiando movimentos grevistas. Médicos, enfermeiros, comerciários, motoristas, operários e incontáveis outras categorias podem trabalhar presencialmente durante a epidemia. 
Professores, jamais, na opinião dos sindicatos.

Capítulo quatro: duplicidade moral.
Lá atrás, as manifestações públicas da militância bolsonarista foram qualificadas pela esquerda como atos criminais de difusão de contágios. A esquerda criticou menos o conteúdo antidemocrático delas que a produção de perigosas aglomerações. Há pouco, porém, setores da esquerda voltaram às ruas, em protestos contra Bolsonaro. Nesse caso, as aglomerações não geraram escândalo.

O vírus tem lado ideológico: as manifestações deles provocam infecções, potencializam a epidemia, causam mortes em massa; as nossas são belas, justas e higiênicas. A esquerda que emerge da Covid nada aprendeu.

Demétrio Magnoli, sociólogo - O Globo