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quarta-feira, 12 de dezembro de 2018

Fantasia perigosa


Alguns administradores públicos acreditam na misteriosa propriedade germinativa do dinheiro; e pior: a crendice tem encontrado guarida no Poder Judiciário.


Um cidadão minimamente responsável pela gestão de suas finanças pessoais sabe que uma queda repentina de suas receitas implica a revisão de suas despesas a fim de manter equilibrado o orçamento doméstico. Os assalariados, empreendedores e profissionais liberais ciosos de sua saúde financeira sabem que dinheiro não dá em árvore e, portanto, não é alvissareiro desdenhar do imperativo matemático.

A mesma regrinha básica — que se convencionou chamar de “responsabilidade fiscal” — que vale na esfera privada também vale na esfera pública. A diferença é tão somente a titularidade e o montante dos recursos que se irão administrar. No entanto, por alguma razão oculta, alguns administradores públicos acreditam na misteriosa propriedade germinativa do dinheiro. E pior: a crendice tem encontrado guarida no Poder Judiciário.  Uma série de decisões judiciais a favor de Estados endividados vem ameaçando não só o reequilíbrio fiscal dos entes federativos, na medida em que retarda a adoção de medidas de ajuste, mas todo o esforço nacional voltado para o ajuste fiscal.
Governadores têm obtido liminares na Justiça tanto para suspender o pagamento de dívidas de seus Estados com a União como para contrair novos empréstimos no mercado financeiro, mesmo sem condições para tal, com garantia do Tesouro Nacional.

A chamada judicialização das questões fiscais dos Estados é um dos estratagemas de governadores não muito dispostos a, antes de bater às portas da Justiça, fazer seus deveres de casa. A defesa enfática de revisões na Lei Complementar n.º 101/2000 – Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) – é outro.  Há dias, governadores eleitos defenderam a descarada ideia de rever pontos da lei que trouxe disciplina à gestão das finanças públicas em fórum do qual participou o presidente eleito Jair Bolsonaro. 
 
 
Ou seja, antes de assumirem seus cargos, os governadores eleitos já se sentem à vontade para advogar a legalização da irresponsabilidade fiscal. Entre os pedidos de “revisão” da Lei de Responsabilidade Fiscal estão a mudança do prazo de dois quadrimestres para que os governos estaduais ajustem os orçamentos a fim de não violar o limite de 60% de gastos com a folha de pagamento, como manda a lei, e até a própria “flexibilização” desse limite. A situação não é diferente no tocante aos municípios. A Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei Complementar (PLP) 270/2016, de autoria do senador Otto Alencar (PSD-BA). O texto altera a Lei de Responsabilidade Fiscal para isentar de punições os prefeitos de cidades que tiverem redução de mais de 10% nos repasses do Fundo de Participação dos Municípios ou de royalties. O presidente Michel Temer precisa vetar esse projeto.

A ofensiva judicial levada a cabo, principalmente, por Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Minas Gerais e Rondônia tem preocupado, com toda razão, a equipe econômica do futuro governo. O presidente eleito abriu um canal de diálogo com o Poder Judiciário para tentar sensibilizar os juízes quanto aos impactos econômicos de suas decisões. É preciso ficar claro, de uma vez por todas, que a separação orçamentária entre os mais diversos segmentos da administração pública se dá, sobretudo, por razões de ordem prática, de conveniência administrativa. É única a fonte de recursos públicos: os contribuintes. Quase duas décadas depois do advento da LRF, que trouxe inegáveis avanços para a higidez da gestão das contas públicas – e, como corolário, toda sorte de benefícios sociais -, há quem proponha uma volta ao passado. Na cabeça de alguns governantes, vive-se hoje uma espécie de versão fantasiosa do federalismo, na medida em que há Estados e municípios que só desejam os bônus na relação com a União, sem arcar com os ônus, inclusive políticos, que fazem parte de uma gestão responsável. É uma fantasia sedutora, porém perigosa.

Editorial - O Estado de S. Paulo