O Estado de S. Paulo
Se o prestígio do Supremo Tribunal já não era grande, sai agora diminuto
Perplexidade talvez seja o melhor termo para caracterizar a decisão do ministro do STF Edson
Fachin de cancelar, por questões processuais, a condenação do ex-presidente
Lula. Perplexidade ainda mais acentuada pelo segundo momento desse teatro do
absurdo, quando a segunda turma põe em votação a imparcialidade ou não do
ex-juiz Sergio Moro.
Os papéis abruptamente se invertem, o decidido torna-se
inválido, o mocinho torna-se bandido. A continuar nessa toada, o ex-juiz será
considerado ficha-suja, enquanto o responsável pela corrupção posará de vítima.
Onde estão agora o “sujo”, o “lixo”, a “corrupção”, o desvio de recursos
públicos, a compra de parlamentares? Vai tudo para debaixo do tapete? [VAI. Alguém com um mínimo de noção é capaz de considerar que o ex-presidiário petista receberá alguma sentença condenatória definitiva nos próximos quinze anos? NÃO é a única resposta que cabe.
Caso ele seja absolvido em primeira instância - improvável, porém, possível - a sentença será interpretada a favor do petista. Jamais será dado efeito suspensivo a um eventual recurso impetrado pela MP em caso de absolvição do líder maior do 'perda total' = um partido que tem aquele individuo como líder maior, realmente perdeu tudo.]
Qual
é a percepção do brasileiro, aquele que não compreende as firulas jurídicas? A
resposta mais imediata, sem dúvida, é a de que o Judiciário condenou
injustamente o ex-presidente da República. Pobre coitado, foi preso
arbitrariamente, numa tramoia urdida por juízes e promotores. Evidentemente,
não sabe a diferença entre anulação do “juiz natural” e anulação de “provas”.
Politicamente é a mesma coisa!
Aliás,
mesmo se compreendesse, ficaria confuso, porque é incompreensível que um
ministro do Supremo, sete anos depois do começo da Lava Jato, decida de súbito
considerar que a vara correspondente de Curitiba não era o lugar adequado de
julgamento. E isso depois de ter ele mesmo, várias vezes, considerado que era
tal. De repente, a “jurisprudência” começa a valer. Talvez um estagiário de
Direito precisasse de 15 dias para chegar a essa conclusão.
Mais
uma vez, conforme a já longa história jurídica e política brasileira, a
impunidade é consagrada! Não se fala mais dos bilhões desviados da Petrobrás,
da corrupção, dos recursos recuperados, mas do réu “inocentado”. A conclusão
parece evidente: o crime compensa! E o “inocentado” pode ainda levar como
recompensa a Presidência da República! [prezado articulista: aí a pegada foi pesada, mesmo sendo uma conjectura - ainda não chegamos ao ponto de alguém se tornar presidente da República por decisão judicial..... é bem verdade que ainda!!!]
A
elite brasileira, cansa-se de repetir, sempre escapa da condenação. O PT sempre
lutou, ou aparentava lutar, contra essa forma social de impunidade. Ora, seu
líder máximo, assim como seus dirigentes deveriam estar nela enquadrados. Para
se livrar de condenações e da cadeia basta ter dinheiro, bons advogados e
perseverança. O crime? Ora, o crime... Isso não importa! O que, sim, conta é
apagá-lo, de preferência por questões processuais, que invalidem provas
abundantes.
A aposta dos advogados é simples – e historicamente bem-sucedida:
um dia encontrarão um ministro que lhes dará razão, e o fará, de preferência,
com uma linguagem jurídica pomposa e gótica para disfarçar o feito.
Um
pobre, uma pessoa de poucas posses, jamais poderá arcar com esses custos e será
abandonado à própria sorte. Pessoas assim serão condenadas e provavelmente
presas. Os ricos e as elites políticas e partidárias sairão sorrindo, assobiando
e declarando que foram injustiçados durante todos estes anos. Os advogados de
Lula, entre ações, sentenças e recursos, devem ter tomado uma centena de
iniciativas, se não mais, entupindo o Judiciário com suas medidas.
É como se a
instituição cuja função consiste na garantia e aplicação da lei devesse
submeter-se a seus interesses e desígnios. Curioso um líder e um partido dito
dos “trabalhadores” se terem colocado nessa posição.
O
Supremo mostrou-se pequeno! Se seu prestígio já não era grande, sai agora
diminuto. Expõe suas fraturas, suas contradições e sua lerdeza, apresentando-se
como impróprio para cumprir sua função constitucional.
O Poder que deveria ser
o do equilíbrio, da moderação e da ponderação torna-se fonte de insegurança
jurídica. Nem o passado lhe resiste. Sua hermenêutica é a da arbitrariedade.
A
decisão do ministro Fachin desautoriza não apenas a si mesmo, o que já seria
bastante grave do ponto de vista lógico e político, mas todas as instâncias do
Judiciário que já haviam julgado o ex-presidente. Sete anos de trabalho foram
simplesmente relegados por uma mera decisão monocrática, como se juízes e
desembargadores nada valessem.
Tribunais como o TRF-4 foram sumariamente
desprestigiados. Ora, o trabalho desse tribunal foi primoroso, imparcial e
independente, tendo várias vezes julgado improcedente a questão colocada pelos
advogados de Lula a respeito do “juiz natural”. Subitamente, tudo é explodido!
Será que são tidos por pessoas despreparadas? Assim o dá a entender a posição
do Supremo, que se volta contra a sua própria instituição.
E
o pior de tudo é que não pararemos por aí. A decisão relativa a Lula terá
certamente efeito cascata, podendo alcançar outras pessoas condenadas na Lava
Jato que se encontrem na mesma situação “natural. Os diferentes advogados já
estão afiando suas facas, procurando incluir-se no caso em questão.
Aproveitarão da nova “jurisprudência”, que seria uma “reafirmação” da anterior.
Imaginem uma situação esdrúxula, porém possível neste cenário de valores
invertidos:
um delator, tendo sua delação anulada por um vício processual ou
pela suspeição do juiz, poderá pedir o ressarcimento dos valores pagos!
É isso
a Justiça?
Denis Lerrer Rosenfield, Professor
de filosofia