Análise Política
A
tentação é debitar isso a algum tipo de falha humana, mas será honesto
notar que a nova administração enfrenta um cenário de complexidade
inédita nas relações com o Congresso Nacional. Pois está sem
instrumentos tão eficazes assim para disciplinar uma base.
Pois não basta montá-la, ela precisa funcionar, especialmente na
dificuldade. Exércitos devem saber desfilar, porém mais importante é
lutar e vencer batalhas e guerras.
Eleitorado que sempre mantém algum vínculo de clientela com prefeitos e vereadores, especialmente nas pequenas e médias.
Regra geral, o deputado vitorioso conseguiu eleger-se arrebanhando um
bom naco dos votos na sua base eleitoral raiz, mas para chegar lá
precisou do eleitor pulverizado em dezenas ou centenas de municípios.
As emendas parlamentares ao orçamento federal ajudam a cumprir esse
papel. As últimas décadas vêm assistindo a uma certa depreciação moral
do mecanismo junto à opinião pública, mas não tem jeito: nosso pork
barrel é essencial para disciplinar o Parlamento. Porém ele só é eficaz
quando funciona por uma lógica de premiação prioritária dos mais fiéis.
Ser governo tem ônus, por isso é razoável que o governismo seja
compensado com algum bônus.
Ser base de governo só faz sentido quando mais ajuda do que atrapalha a
reproduzir o próprio poder. No caso específico das emendas
parlamentares, é natural que os governistas tenham mais recursos
orçamentários do que os oposicionistas para destinar às bases
eleitorais. Mas, no Brasil acostumado ao achincalhamento do toma lá dá
cá e à promoção de um pseudo-republicanismo hipócrita, é esperado que o
Parlamento prefira ocultar isso.
O enfraquecimento quase terminal de Dilma Rousseff e Michel Temer e, na
sequência, a luta de Jair Bolsonaro para chegar ao fim do mandato
tiveram como efeito colateral a gigantesca anabolização das emendas
parlamentares, pois o custo político de sobreviver na Presidência
costuma crescer hiperbolicamente conforme se esvai o poder real do
ocupante da cadeira. Disso tudo nasceu o teratoma da emenda de relator
de muitos bilhões de reais.
Que para impacto jornalístico recebeu o rótulo de “orçamento secreto”.
Para que o apoio congressual ao governo funcione, é sempre necessária
uma porção “secreta” (não é pública a informação de que parlamentar
destinou aquele recurso) no orçamento destinado às emendas. Mas a
opinião pública tem dinâmicas próprias, e o assunto virou escândalo
quando, em vez de alguns caraminguás, o montante chegou à casa dos dez
dígitos.
Ao longo da campanha eleitoral, a oposição atacou o “orçamento secreto”
com dois objetivos. Retomar para o eventual governo do PT o comando da
discricionariedade na destinação do grosso das emendas parlamentares e
emagrecer o mecanismo, para trazer de volta ao Executivo recursos
destinados a investimento num orçamento federal grandemente engessado e
amarrado a gastos obrigatórios de custeio.
Mas na hora de resolver o problema alguma coisa não saiu conforme o
planejado, pois o resultado prático do acordo costurado após o STF
“derrubar o orçamento secreto” 1) manteve o volume de dinheiro destinado
a emendas parlamentares e 2) transformou boa parte da emenda de relator
em emendas individuais, identificáveis, mas de execução obrigatória,
pelo mecanismo chamado “orçamento impositivo”.
O produto da lambança é que todo deputado tem para 2023, no mínimo, mais
de 30 milhões de reais para destinar às bases eleitorais, e cada
senador tem mais quase 60 milhões. Independentemente de como votar ao
longo destes quatro anos. Claro que quem votar com o governo vai poder
destinar um tanto a mais, proveniente do orçamento próprio dos
ministérios, mas a execução impositiva já garante ao parlamentar o
colchão capaz de construir uma campanha eleitoral bem competitiva.
Fato ainda mais importante quando as contribuições empresariais de
campanha estão proibidas e quando os recursos do fundo eleitoral
costumam ser comidos pelas candidaturas majoritárias. E quando o que
sobra do fundo eleitoral para os candidatos proporcionais fica ao
arbítrio do dono da legenda.
Uma consequência do paradoxal enfraquecimento das emendas para efeito de
disciplinamento da base, apesar do gigantesco volume de recursos nisso
empregado, é o acirramento da disputa por espaços na máquina, que havia
arrefecido em algum grau no governo Bolsonaro. Mas compreende-se a
relutância do governo em abrir espaços generosos para forças políticas
que até outro dia estavam contra Luiz Inácio Lula da Silva e o PT.
Só que dois terços do Congresso Nacional habitam do centro para a direita.
Há ainda outro mecanismo algo eficaz para disciplinar bases
legislativas: a ameaça potencial de o dono dos votos majoritários não
apoiar o parlamentar, ou apoiar um concorrente na base dele. Mas esse
mecanismo funcionava mais com Bolsonaro, pois a maioria do Congresso
provinha de um eleitorado alinhado ou inclinado ao então presidente.
Agora, a maioria dos parlamentares elegeram-se ou contra Lula ou
correndo em raia independente.
O nó é complexo.
Alon Feuerwerker, jornalista e analista político