Recuo no caso das armas foi só mais um, desde a bobagem sobre a embaixada em Israel
Vai mal um presidente quando precisa de grupos na rua em manifestações
de apoio. Collor precisou. Pode ir mal um país quando seu presidente
recomenda aos apoiadores evitar ataques ao Congresso e ao Judiciário.
Que apoiadores são esses? Estarão enganados quanto às convicções
democráticas de seu líder? Podem ter-se enganado, talvez, quando esse
líder repassou em rede um texto sobre a impossibilidade de governar com
as instituições. O tom do texto era golpista, mas ele declarou, depois,
havê-lo simplesmente repassado.
Por que repassou, se discordava, e sem adicionar uma palavra de
rejeição? Isso nunca foi explicado, mas explicar nunca foi o forte desse
presidente. Ele comprovou essa qualidade, mais uma vez, ao anunciar um
projeto capaz de render mais que o trilhão de reais pretendido pelo
ministro da Economia, Paulo Guedes, com a reforma da Previdência. O
projeto, soube-se depois, é uma fórmula para o governo ganhar dinheiro
com a atualização de valor de imóveis incluídos na Declaração de Renda.
Na prática, seria uma antecipação do imposto pago depois da venda. E se
esse bem nunca for vendido? A ideia básica já foi rejeitada em países do
mundo rico. Para o presidente e alguns de seus auxiliares, deve ser uma
grande novidade. A propósito: o ganho para o Tesouro, se houver, ficará
muito longe do trilhão, segundo fonte do próprio governo.
Enquanto o presidente se ocupava da manifestação, estranhamente descrita
por alguns como um “protesto a favor do governo”, congressistas
ocupavam espaço político, aprovavam na Câmara a medida provisória de
recomposição dos ministérios e punham em tramitação um projeto próprio
de reforma tributária. Para alguns, a movimentação na Câmara foi um recuo do Centrão,
pressionado pelo governo e por seus apoiadores. A visão oposta parece
mais adequada. Afinal, os deputados, além de mostrar serviço, negaram a
transferência do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf)
para o Ministério da Justiça e se anteciparam ao projeto governamental
de mudança dos impostos e contribuições. Pode-se discutir o alcance de
cada um dos projetos, o da Câmara e o do Ministério da Economia, mas o
Executivo foi inegavelmente atropelado – e sem invasão de atribuições,
acusação dirigida ao presidente no caso do decreto sobre porte de armas.
Mais importante ainda, parlamentares de peso, a começar pelos
presidentes da Câmara e do Senado, já se declararam comprometidos com a
reforma da Previdência, com ou sem atuação do Executivo.
Contestado no Parlamento e no Judiciário, o presidente acabou forçado a
editar um novo decreto sobre o assunto, para restringir, por exemplo, o
acesso a certo tipo de fuzil. Um dia antes, as ações da Taurus haviam
disparado na bolsa paulista, depois de anunciada pela empresa uma fila
de 2 mil pessoas interessadas na compra daquela arma. Entre outras
mudanças, o segundo decreto reduziu as facilidades para crianças
ingressarem nas escolas de tiro e iniciarem a vida no mundo do
bangue-bangue, tão valorizado entre muitos bolsonaristas. [epa... valorizado e necessário; usar uma arma sem treinamento é válido, desde que necessário;
mas, o ideal é o treinamento, intenso e frequente.]
Mais um recuo foi incluído, portanto, na lista bolsonariana. O
presidente já havia recuado, por exemplo, da tentativa de controlar o
preço do diesel. Não parece ter abandonado totalmente a ideia, mas foi
forçado a amaciar sua atitude depois de uma desastrada pressão sobre a
diretoria da Petrobrás. Recuou também da decisão de impor seus
critérios, formalmente, à publicidade das estatais. A bobagem estava
claramente encaminhada, na área de Comunicação, quando o secretário de
Governo, general Santos Cruz, chamou a atenção para a Lei das Estatais.
Não pode o Executivo, segundo essa lei, meter-se em decisões
administrativas como a publicidade estritamente mercadológica. [desse entendimento, discordamos; sendo o governo o maior acionista de uma estatal - no caso em questão o Banco do Brasil, sociedade de economia mista, sendo o governo o acionista majoritário - é justo que ele possa interferir quando recursos da empresa estão sendo desviados para finalidades que não compensam - no caso o objetivo alegado era aumentar a clientela do BB, só que o público alvo não é numeroso, não compensando gastar muito com publicidade para atrair seus integrantes.]
No começo do mandato o presidente já havia abandonado [adiado para as calendas gregas.], ou pelo menos
adiado, o plano de mudar para Jerusalém a embaixada em Israel. Advertido
para o custo de uma encrenca com países muçulmanos, grandes
importadores de alimentos produzidos no Brasil, reviu sua ideia e
substituiu a mudança da embaixada pela instalação de um escritório
comercial. Mais que uma decisão econômica, esse remendo foi uma
tentativa de mostrar-se fiel ao compromisso de seguir, algum dia, seu
líder Donald Trump e ao mesmo tempo contentar os apoiadores evangélicos.
Nenhum desses motivos tem relação com os interesses políticos e
econômicos de uma diplomacia de respeito.
O Executivo brasileiro recuou também do anunciado abandono do Acordo de
Paris sobre o clima. Deu mais um passo atrás ao confirmar, depois de
havê-la negado, a realização, em Salvador, de uma conferência regional
preparatória para uma grande reunião sobre a questão climática em
Santiago do Chile. Alguém próximo do presidente deve ter-lhe apontado os
enormes custos diplomáticos e comerciais de suas bravatas
anticonservacionistas. Os custos internos do empobrecimento ambiental
deveriam ser suficientes, mas a esses o presidente e vários de seus
auxiliares parecem absolutamente insensíveis.
Enquanto o presidente passava mais uma semana tropeçando, perdendo tempo
e sendo forçado a recuar mais de uma vez, o vice Hamilton Mourão
participava de reuniões em Pequim, era recebido pelo presidente Xi
Jinping e tentava anular os danos causados por seu chefe e pelo ministro
das Relações Exteriores na relação com a China, maior cliente das
exportações brasileiras. Além de ser grande compradora, a China tem um importante programa
internacional de investimentos em infraestrutura. É preciso, sim,
avaliar a conveniência de cada projeto, mas isso é função normal de um
governo tecnicamente preparado, competente na ação diplomática e levado a
sério pelas autoridades estrangeiras.
Sem essas qualidades, nenhuma passeata de apoio será suficiente para
fortalecer um presidente e sua equipe. A ruindade será do governo. Não
adianta culpar a democracia.