O Estado de S.Paulo
Será que a radicalização e a ideologização não levam à cegueira?
Quando a insegurança e a instabilidade reinam, apelos autoritários passam a se fazer ouvir
A radicalização de setores da sociedade não é, certamente, a expressão
de um corpo sadio, mas de um já infectado por vírus desagregadores.
Expõe ela uma fratura social importante, na medida em que os segmentos
polarizados não se reconhecem em valores comuns, em regras aceitas por
todos. Passa a vigorar a política de cunho autoritário do “nós” contra
“eles”, tão popularizada na narrativa petista. Acontece que ela veio a
tomar conta da esfera política em sua totalidade, suscitando reações
contrárias de sinal oposto, o que ficou claro na vitória do atual
presidente da República e, agora, naquilo que se convencionou chamar de
bolsonarismo.
Estamos vivenciando um período em que as distinções e as nuances
desaparecem, da mesma forma que posições de centro e de apaziguamento
perdem importância, embora sem prejuízo de poderem vir a ser
recuperadas. Observe-se que a polarização se faz igualmente presente no
juízo que se faz da Operação Lava Jato e de seus eventuais excessos, [sic]
como se não houvesse espaço para uma posição que possa aceitar e elogiar
os seus feitos, sem fazer vista grossa para ações em que seguir a lei
se tornou não uma diretriz central, mas algo que deveria estar
subordinado a uma noção abstrata e redentora de justiça.
É-se, assim, contra ou a favor de tal promotor, procurador, ministro do
Supremo Tribunal, desembargador, como se a justificativa fosse por si
mesmo evidente em ser a favor ou contra tal indivíduo. A questão central
de saber se tal ação se conforma ou não ao Estado de Direito é relegada
a segundo plano. A situação pode chegar a extremos, como quando um
ex-procurador-geral da República, visto por muitos como um combatente
contra a corrupção, observador da lei, lutando pela “justiça”, se
mostra, por confissão própria, um psicopata, que revela a intenção de
assassinar um ministro de Supremo, por este ter ferido a honra de sua
filha.
Imaginem se a moda pega! Qualquer pessoa ofendida estaria autorizada a
matar o próximo, sempre e quando o nome de sua filha estivesse em
questão. A questão é da maior gravidade por estar precisamente inserida
na polarização reinante. O referido procurador-geral foi eleito por seus
pares em duas listas tríplices e, então, escolhido pelo presidente da
República. Será que ninguém percebeu de quem se tratava? Será que a
eleição pelos pares é o melhor método de escolha de um procurador-geral?
Será que a radicalização e a ideologização não levam à cegueira?[felizmente, o presidente Bolsonaro detonou o sistema de subordinados escolherem o chefe.]
A política contemporânea, com sociedades democráticas encontrando
dificuldades crescentes para fortalecer as suas instituições, vai se
caracterizando cada vez mais por polarizações, como se os meios-termos
da vida democrática, as negociações, as conciliações e as mediações
fossem atributos desnecessários. O Brasil atual não inova, porém
potencializa tal tendência.
Mediar e negociar são termos que, frequentemente, são identificados com
traficar e corromper, como se a solução estivesse na escolha binária
entre opções políticas que se excluem mutuamente. Políticos são
desmerecidos como se fossem meros agentes de negociatas defendendo
interesses particulares, fazendo com que a política deixe de lado a sua
dignidade. Em seu lugar surgem, então, “opções” que primam pela
radicalização e simplificação de posições, fazendo com que as
instituições propriamente democráticas percam sua legitimidade. Se a
política se degrada, a primeira vítima é a democracia.
A política do confronto faz com que a sociedade seja permanentemente
mobilizada, provocada a embates constantes, como se desse processo
viesse a surgir uma nova política, não maculada pela velha, a do
diálogo, da persuasão e do convencimento. O parceiro do diálogo e da
negociação, algo próprio da vida parlamentar, passa a ser, no ambiente
extralegislativo, considerado não somente como um adversário a ser
vencido, numa contenda eleitoral por exemplo, mas também como um inimigo
a ser abatido. Tal política do confronto é, ademais, potencializada
pelas redes sociais, cujo modo de funcionamento se adapta perfeitamente a
escolhas simples entre bons e maus, impolutos e corruptos, redentores e
condenados. Alguns as veem mesmo como substitutas das ruas, o lugar de
manifestações raivosas lideradas pelos que assumem a radicalização como
modo de fazer política. A rua digital tomaria o lugar da rua real, como
se a realidade tivesse encontrado um substitutivo.
A distinção amigo/inimigo ganha, assim, os mais amplos contornos, seu
significado político se estendendo a acepções morais e religiosas, a
arena passando a ser não somente a política no seu sentido restrito, mas
os costumes e os valores religiosos. Tudo se torna motivo de
polarização, numa narrativa que, incessante, não admite trégua. A
questão não se resume aí a ser de esquerda ou de direita, mas de adotar,
em qualquer uma dessas posições, a política do enfrentamento e a de
considerar o outro como inimigo. A equação torna-se, então, propostas
autoritárias versus democráticas.
Não florescem tais políticas em terrenos sadios, mas degradados. A sua
fertilidade depende da corrupção reinante, da falta de perspectivas dos
cidadãos, da decadência dos costumes, da perda de balizas, do
desemprego, da criminalidade reinante, da crise econômica e do
enfraquecimento das instituições. Fosse a situação econômica, política,
social e cultural outra, tais políticas pouca adesão suscitariam entre
os cidadãos, muito menos mobilizações de massas, reais ou digitais. As
pessoas certamente prefeririam continuar em suas condições de segurança e
bem-estar social, não se arriscando a nenhuma aventura política.
Estando contentes com suas instituições, não veriam razões para
abandoná-las. O cenário muda de figura quando a insegurança reina e a
instabilidade começa a tomar conta de todos os poros da sociedade. Nesse
contexto, os apelos autoritários começam a se fazer ouvir.
Denis Lerrer Rosenfield - e-mail: DenisRosenfield@terra.com.br Professor de filosofia na UFGRS - Publicado no Estado de S. Paulo