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quarta-feira, 29 de setembro de 2021

A lenda da agropecuária como vilã da crise hídrica - Revista Oeste

Sabrina Nascimento 

Especialistas esclarecem que o baixo volume de água nos reservatórios brasileiros é consequência do ciclo natural da chuva 

Não é novidade que o Brasil passa por uma das piores crises hídricas dos últimos 91 anos e que o Serviço Nacional de Meteorologia emitiu um alerta de emergência hídrica para a Bacia do Paraná, que abrange as Regiões Sudeste e Centro-Oeste do país. Especialistas apontam o baixo volume de chuva dos últimos dez anos como o responsável por esse cenário. No entanto, ambientalistas a serviço da desinformação encontraram outro culpado: a produção agrícola no Cerrado.

Cenário das Cataratas do Iguaçu, em Foz do Iguaçu, no Paraná, no dia 16/6/2021 | Foto: Luis Moura/WPP/AE
Cenário das Cataratas do Iguaçu, em Foz do Iguaçu, no Paraná, no dia 16/6/2021 | Foto: Luis Moura/WPP/AE

Atualmente, o Cerrado é o segundo maior bioma do país, atrás apenas do bioma Amazônia, e tem cobertura de 2 milhões de quilômetros quadrados, o que corresponde a 204 milhões de hectares mais de 200 milhões de campos de futebol. O bioma inclui os Estados de Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Tocantins, Maranhão, Piauí, Bahia, Minas Gerais, São Paulo e o Distrito Federal, mas também está presente em pequenas coberturas no Paraná e em Rondônia.

E, apesar de sua maior cobertura ficar na região central do país, nas últimas semanas parte da imprensa relacionou a produção agrícola e pecuária no bioma com o baixo volume de água nas Cataratas do Iguaçu, localizadas em Foz do Iguaçu, no Paraná.  Mas, afinal, as Cataratas do Iguaçu têm alguma relação com a produção agropecuária na Região Centro-Oeste do Brasil? “Nada!”, explica Luiz Carlos Baldicero Molion, professor e pesquisador aposentado da Universidade Federal de Alagoas. “Como o próprio nome diz, as cataratas são do Iguaçu, que divide o Paraná e Santa Catarina. Não tem nada a ver com o Centro-Oeste. É um argumento falso, que não sei se foi feito por ignorância ou de propósito.”

Molion explica que, para entender a atual situação, é preciso olhar o regime de chuvas. Desde o segundo semestre de 2020 até o começo de maio de 2021, a Região Sul ficou sob efeito do fenômeno La Niña, responsável por deixar o tempo mais seco e com pontos de estiagem em algumas localidades. O La Niña, ao contrário do El Niño outro fenômeno climático —, diminui a temperatura da superfície das águas do Oceano Pacífico tropical central e oriental, gerando uma série de mudanças nos padrões de precipitação (queda de água do céu) e também em relação à temperatura.

Quando esse fenômeno está vigente, o que acontece é uma mudança no padrão de ventos, que se tornam mais ou menos intensos, o que muda a chegada das frentes frias. Como efeito, há redução no volume de chuvas na Região Sul, enquanto no Norte e no Nordeste há aumento.  Mas esses baixos volumes de chuva na principal estação úmida não foram registrados somente nos últimos meses. “Se fosse só um ano, aí, tudo bem, é uma crise passageira, mas como é o acumulado dos últimos dez anos, o problema fica um pouco mais grave”, esclarece o pesquisador, que fez uma análise nacional da precipitação no período 2011-2020, comparada com o ciclo de 1981-2010 (média usada pela Organização Meteorológica Mundial):

No mapa, é possível ver o efeito ao longo do país. O leste (cor verde-abacate), por exemplo, apresentou reduções de até 30 milímetros de chuva por mês, em média. Isso resulta em uma baixa anual da precipitação de 360 milímetros. “Como houve uma tendência entre 2010-2021 de a pressão atmosférica aumentar nessa região entre Bahia, Centro-Oeste, na Bacia do São Francisco, na costa leste brasileira como um todo — e isso vai desde São Paulo, norte do Paraná até lá no Rio Grande do Norte, Maranhão, Piauí —, por toda essa faixa leste o país apresentou nos últimos dez anos uma redução de chuva”, diz Molion. “A problemática é exatamente essa: a chuva. As Cataratas do Iguaçu não têm nada a ver com a agricultura.”

Brasil mais seco?
Recentemente, algumas pesquisas mostraram que regiões brasileiras estariam perdendo água da superfície, com destaque para o Pantanal, conhecido pelas enchentes causadas pela alta do nível dos rios durante o trimestre chuvoso (entre novembro e janeiro). Isso, de fato, é verdade, pois houve uma “redução de chuva na ordem de 10% no país desde 2010”, destaca Molion. Porém, não é a expansão de áreas destinadas à produção agropecuária no Cerrado ou o desmatamento da Amazônia que provocam esse efeito. “A floresta existe porque chove, e não o contrário”, ressalta. “Uma árvore não é uma ‘máquina’ de produzir água, apenas recicla a água da chuva que caiu anteriormente e que estava armazenada no solo.”

A agricultura irrigada também tem sido alvo de críticas nesse momento de baixo volume de água nos reservatórios

Vale lembrar que, em anos anteriores, o país já passou por quadros hídricos semelhantes ao atual. Em 1926, por exemplo, quando nem se falava em desmatamento da Amazônia e o Brasil não era um grande exportador de alimentos, a população vivenciou um período de seca causado pelo fenômeno climático El Niño. Já em 1964, foi o Oceano Atlântico tropical norte mais quente que provocou a deficiência de chuva. Essa última “variabilidade natural” é o agente causador da seca de 2021. “Portanto, o desmatamento não afeta as chuvas no restante do país.

Como se trata de um ciclo que se repete ao longo dos anos, a irregularidade climática tem um início e um fim. Os mais pessimistas acreditam que uma regularidade só será vista a partir de 2040. Entretanto, Molion estima que “entre 2030 e 2035 já poderemos ver uma normalidade”, sem eventos excepcionais, como secas extremas. O último longo período de precipitação baixa foi entre 1946 e 1975.

Uso da água para irrigação
A agricultura irrigada também tem sido alvo de críticas nesse momento de baixo volume de água nos reservatórios. A categoria corresponde a menos de 20% da área total plantada no Brasil e produz mais de 40% dos alimentos, de acordo com a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). Atualmente, os pivôs centrais (estrutura de irrigação suspensa com motor e rodas para que haja o deslocamento na lavoura) são o principal sistema de irrigação brasileiro, superando o método de inundação adotado para o cultivo do arroz na Região Sul.

Originalmente, os pivôs centrais começaram a ser usados para o cultivo de grandes culturas, como soja e milho. Porém, já são encontrados em plantações de batata, cenoura, café nas áreas de Cerrado, cebola, alho e cana-de-açúcar. “Esses equipamentos são também indutores do cultivo das culturas de inverno, como o trigo e a cevada na região do Cerrado”, comenta Daniel Pereira Guimarães, pesquisador da Embrapa Milho e Sorgo. “Sob condições irrigadas, o trigo tem apresentado alta produtividade, inclusive no semiárido brasileiro, indicando o potencial da irrigação para a redução das importações desse cereal.”

Apesar dessa contribuição, o aumento da rigidez na gestão de distribuição da água por parte de governos estaduais volta seu olhar para os agricultores que utilizam a técnica. Há um receio por parte do poder público e de ONGs do uso excessivo de recursos hídricos com os pivôs. No entanto, eles se esquecem de que muitos produtores rurais têm açudes (tanques) em suas propriedades para armazenamento de água no período de abundância. Além disso, “sistemas eficientes de irrigação podem inclusive contribuir para a mitigação da deficiência hídrica nos períodos de estiagem”, explica o pesquisador.

Diante desses fatores, ao que tudo indica, o único setor que registrou crescimento econômico em 2020, mesmo durante uma pandemia global, continuará a ter pela frente inúmeros desafios, não só climáticos, que atingirão diretamente a produção no campo. Apesar de seu protagonismo mundial na produção de alimentos — ou justamente por isso —, terá de lidar com críticas de ambientalistas que atribuem ao setor a responsabilidade pelo desmatamento e pela falta de chuva no país

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Sabrina Nascimento, jornalista - Revista Oeste