Tinham em comum a revolta contra opressores que se ajudavam mutuamente.
O jornalista Tony Karon, nascido na África do Sul, sionista na
juventude e atual produtor na Al Jazeera, lembra seus tempos de
militância anti-apartheid na Cidade do Cabo.
Em artigo recente,
escreveu: “Muitos de nós ficamos horrorizados quando, em 1976, Israel
recebeu a visita oficial do primeiro-ministro sul-africano John Vorster,
nazista convicto que trabalhou numa organização paramilitar ligada à
Abwehr [serviço de inteligência militar de Hitler]”.
A venda de armas de
Israel para a África do Sul era segredo de polichinelo, assim como a
assistência israelense à Força de Defesa do regime bôer.
A descolonização, como se sabe, não seguiu propriamente o roteiro
sonhado pelo intelectual martinicano Aimé Césaire — restituir humanidade
tanto ao colonizado como ao colonizador, numa mesma comunidade de
pertencimento.
Fracassos se acumularam, e correções de curso continuam a
coalhar a caminhada com desgraças.
Contudo a cartada da África do Sul,
ao cobrar da Corte de Haia um posicionamento, tem o mérito de conseguir
nos envergonhar pela cumplicidade mundial diante de décadas de
desenraizamento e opressão de um povo.
Silenciadas, gerações e gerações
de palestinos tiveram existência apagada, nulificada. Gaza é apenas a
aberração mais gritante.
Para Netanyahu, a semana foi indigesta também no front interno.
O
conservador Yedioth Ahronoth, maior jornal do país, divulgou uma notícia
sombria:
“Ao meio-dia do 7 de Outubro, as Forças de Defesa de Israel
(FDI) ordenaram a todas as unidades de combate em ação usar a Diretiva
Hannibal, sem menção explícita ao nome. A ordem era parar ‘a qualquer
custo’ toda tentativa de retorno a Gaza dos terroristas do Hamas,
apesar do temor de que levavam consigo reféns.(...) Estima-se em cerca
de mil os terroristas e infiltrados mortos entre o assentamento de Olaf e
a Faixa de Gaza. Não está claro quantos reféns foram mortos em
decorrência dessa ordem”. Perto de 70 veículos foram encontrados na
mesma área, atingidos por um helicóptero de combate ou mísseis
antitanque das FDI.
“Diretiva Hannibal” é o nome dado a um procedimento militar
oficialmente abandonado pelas FDI em 2016.
Visava a impedir a captura de
soldados israelenses por tropas inimigas. Sua versão mais genérica
ensinava: “A tomada de reféns precisa ser impedida por todos os meios,
mesmo ao preço de alvejarmos e causarmos danos a nossas próprias
forças”.
Sujeitas, portanto, a interpretação e aplicação elásticas.
No
mês passado, o diário liberal Haaretz já havia aventado a hipótese de a
Diretiva Hannibal ter sido usada no fatídico 7 de Outubro, quando 40
terroristas do Hamas foram alvejados por dois disparos de canhão numa
casa em Be’eri, assentamento israelense. Havia 14 reféns civis na casa.
Apenas uma saiu com vida do horror. Hadas Dagan, cujo marido foi uma das
vítimas, não culpa as equipes de socorro israelenses:
— Eles também deram a vida por nós.
Hoje é o centésimo dia de cativeiro para mais de 130 reféns ainda em mãos do Hamas. Quanta tragédia entrelaçada!
Dorrit Harazim, colunista - O Globo