Entendimento da procuradora-geral relativiza prerrogativa presidencial e atende a princípio republicano de não haver poderes absolutos
O curto
governo do presidente Michel Temer tende a ser resumido, no futuro, a dois
capítulos — o dos avanços no plano econômico, enquanto enfrentava a maior crise
fiscal da história; e o dos escândalos de corrupção, o maior deles o da
relação, incabível para um presidente, com o empresário Joesley Batista, da
JBF, motivo pelo qual Temer perdeu as condições morais e políticas para
realizar a decisiva reforma da Previdência. Acossado por denúncias da
Procuradoria-Geral da República, gastou todo seu capital político para barrar
as acusações na Câmara dos Deputados.
A vitória
exauriu as forças do governo, e parecia que, ao menos neste front, Temer apenas
contaria o tempo para descer a rampa do Planalto. Não é isso o que acontece,
porque tramitam inquéritos em torno de Temer, que aparentava tranquilidade com
o entendimento usual de que a Constituição estabelece que o presidente só pode
ser responsabilizado na Justiça por fatos ocorridos durante seu mandato e
relacionados a ele. É o que
está no parágrafo 4º, do artigo 86 da Carta: “O presidente da República, na
vigência de seu mandato, não pode ser responsabilizado por atos estranhos ao
exercício de suas funções”. A procuradora-geral da República, Raquel Dodge,
porém, ao contrário de seu antecessor, Rodrigo Janot, entende que não contraria
a Carta investigar o chefe do Executivo, desde que ele não seja
“responsabilizado”. [um único comentário:
Os que quiserem conhecer argumentos que trituram o entendimento da doutora Dodge, cliquem aqui:VEDAÇÃO MACULADA - Ives Gandra da Silva Martins.]
Há pelo
menos dois ministros do Supremo que concordam com a procuradora — Luís Roberto
Barroso e Edson Fachin. A questão tem relevância, porque dois inquéritos de
peso tramitam no STF: com o ministro Barroso, um sobre decreto baixado por
Temer supostamente para ajudar a empresa Rodrimar, de Santos, que atua no setor
de terminais; o outro, conduzido por Fachin, trata da delação da Odebrecht de
um jantar ocorrido com o ainda vice-presidente, no Palácio do Jaburu, em que
teria sido acertado o repasse, em dinheiro sujo, de R$ 10 milhões, para o MDB.
A partir
do entendimento de Dodge e dos ministros da Corte, [dois ministros em uma Corte com onze ministros] providências têm sido
tomadas para o levantamento de informações. Luís Roberto Barroso, por exemplo,
acaba de determinar a quebra do sigilo bancário de Temer, no caso da Rodrimar,
em que também está o ex-deputado Rocha Loures, ex-assessor do presidente, o
mesmo da corrida com a mala dos R$ 500 mil. Já Edson Fachin incluiu Temer no
inquérito sobre os R$ 10 milhões, originados de propinas.
O
argumento de Raquel Dodge tem peso: justificam-se as investigações para que
provas não sejam danificadas, adulteradas, destruídas. Um presidente, por
exemplo, que fique oito anos no poder poderá impedir muita coisa. Limita-se,
assim, uma prerrogativa presidencial, sem extingui-la, dentro do bom princípio
de que na República não pode haver poderes absolutos.
Editorial - O Globo